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Narrar Liberdades

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Ivo Saraiva e SIlva
25 de Abril de 2024

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Narrar Liberdades

A uma dada altura, aos 25:42 do segundo episódio da série Mary&George (2024), a implacável Mary (Julianne Moore) afirma que “corpos são corpos”. Mary cita o seu filho George (Nicholas Galitzine), que por sua vez foi influenciado por Jean (Khalil Ben Gharbia), seu tutor. Ainda que esta afirmação esteja inserida no contexto histórico que a série desenvolve, e que quer articular o modo como o desejo e o seu vício se emaranham em jogos de poder político (na corte de Jaime VI & I, rei da Escócia e Inglaterra), não deixa de analisar a contradição das narrativas ora individuais ora coletivas vividas pelas personagens.


Numa observação simplista à série, “corpos são corpos” traduz uma ideia de liberdade sexual e de desejo que a maior parte dos personagens experimentam, na maioria das vezes canalizada para obter privilégios ou sofrer desfavorecimentos, dentro de uma corte que cumpre uma conjuntura aonde todos se comportam segundo o seu papel, tal como uma máscara. Não é de estranhar que a vida numa corte assim aconteça, repleta de relações por interesse e sorrisos para o pintor do retrato. Ainda assim é, nas cortes atuais, bem como no exercício político em geral. Não obstante, é visível que se cumpre uma discrepância entre aquilo que se faz, aquilo que se é, e aquilo que se narra. Byung Chul-Han diria que o poder se baseia na falta de transparência para conseguir exercer-se e, por isso, tornar-se transparente seria retira-lhe o nome: poder. (CHUL-HAN, Byung, A Sociedade da Transparência, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio d’Água).


Além dos diversos universos discursivos que a série atravessa, o seu posicionamento tenta dar conta de relações e identidades queer existentes em circuitos conservadores, bastante padronizados, normativos e estanques no que toca às noções de feminino e masculino. Ao mesmo tempo, os autores (D. C. Moore, Oliver Hermanus, Alex Winckler e Florian Cossen) tentam reforçar narrativas pouco visíveis nesse passado e que pode ajudar a confirmar o percurso de uma cronologia queer.


É através da narração que há a possibilidade de nos interpretarmos a nós próprios e de sonharmos um futuro mais capacitado para todas as pessoas, que é o mesmo que dizer de lutarmos por uma liberdade, de gritarmos por circunstâncias mais justas. Enquanto que o padrão conservador parece aferir “tem de ser”, a recuperação de narrativas grita “tens de ser”. É nestas duas frases de ordem que parece Mary&George dar foco, na sublimação de que se lute por sociedades cada vez mais tolerantes. Ademais, o motivo da série cumpre uma resistência narrativa face à falha do ato de narração que Byung Chull-Han denuncia na contemporaneidade: “Deixámos de contar histórias uns aos outros. Em contrapartida, comunicamos em excesso. Passamos o tempo a publicar, a partilhar e a gostar das publicações (post, share, like). A “contemplação ritual” que avalizava o acervo da consciência coletiva deu lugar ao inebriamento comunicativo e informativo. (...) A comunidade sem comunicação dá lugar a uma comunicação sem comunidade.” (HAN, Byung-Chul, 2024, A Crise da Narração, trad. Gilda Lopes Encarnação, Lisboa: Relógio d’Água, p. 78).


O grito pela liberdade acaba por corporizar-se através das narrativas destes corpos recuperados lá atrás e que oferecem contornos mais amplos à identidade das comunidades e aos seus desejos. Para a humanidade, entre o ato de narrar e o desafio de conhecer-se a si própria, acontece o gesto de narrar-se a si mesma.


Maus Hábitos de Alana S. Portero dedica sólidos contributos ao exercício de um corpo – que é só um corpo – que se vê na dificuldade de corresponder a uma conjuntura que estruturalmente passou a oprimi-lo. Na obra, a autora narra-se a si própria e desvela o percurso do seu próprio brado de liberdade, o veículo da sua própria história: “A primeira vez que pisei a rua vestida e maquilhada sem ambiguidades, a primeira vez que me apresentei em público como uma verdadeira mulher, sem escapes estéticos que pudessem usar-se para justificar o meu aspeto, como o de uma masculinidade feminina, foi um momento de poder no qual não houve inércia nem medo que conseguissem travar-me. Nunca me tinha sentido assim. A euforia que conheci na noite em que me confessei a Jay voltava, multiplicada por cem. Era uma euforia adulta, uma felicidade que se impunha a qualquer olhar que pudesse receber. Por uma vez na vida, senti que estava acima do ódio, da vergonha e dos preconceitos. Queria estar ali mais do que em qualquer outro lugar, queria ser eu sem fantasias de transformações feéricas. Cada som dos saltos no chão era uma canção vitoriosa e parecia-me que os astros se alinhavam para me concederem um pouco de divindade. Estava viva e empurrava o meu próprio coração para que continuasse a bater, em vez de me arrastar com ele e esperar, indiferente, que parasse. O que para outras era uma imposição que compreendia perfeitamente, deste lado estava a ser uma conquista. As mulheres não eram abelhas que se alimentassem do mesmo néctar: libertar-se, abrir-se ao mundo, reclamar o espaço que nos era devido podia fazer-se de posições muito diferentes e todas elas eram boas. A minha era assim, feminina e orgulhosa. (...) A passagem de uma vida fantasmagórica para a corporeidade.” (S. PORTERO, Alana, 2023, Maus Hábitos, trad. Helena Pitta, Lisboa: Alfaguara, pp. 198 e 199).


S. Portero recupera o seu próprio corpo para o narrar, para o fazer exibir-se (e existir) na identidade que lhe pertence. Para além deste gesto, o de escrever (narrar) como se desenhasse o contorno dos seus membros, a autora acaba por tornar a sua biografia fortemente política, por se inscrever nessa reintegração de narrativas que, por analogia, se esforçam por dar visibilidade àquelas que permaneciam esquecidas, e por isso são tidas comumente como “novas”, quando finalmente traziadas para o conhecimento geral: “Novas narrativas motivam novas perceções do mundo. A inversão de todos os valores de Nietzsche inaugura uma nova perspetiva do mundo. É como se se narrasse o mundo de modo distinto. Começamos a ver o mundo com outros olhos.” (CHUL-HAN: p. 69). Ademais, para um leitor debaixo do sol português, o romance de S. Portero parece responder ao verso “Quis Saber Quem Sou”, que foi a senha da revolução pela liberdade, a 25 de Abril de 1974.


Quando um corpo é só um corpo, é a sua própria narração que o conecta ao eu que lhe pertence e define a liberdade – que, no caso em particular de S. Portero, depende de várias circunstâncias e contextos. Neste seguimento, S. Portero aponta como é que o contexto do trabalho desprotegeu e amassou as suas relações familiares, que levou à falta de suporte à sua emancipação identitária. É, neste curso, que o seu próprio corpo aparece oprimido pelo corpo do trabalho, que acaba por dificultar a constatação de possibilidades de existência: “Fomos sempre intempestivos no amor familiar e as circunstâncias não nos ajudaram a aprender a comunicar uns com os outros. Ninguém sai incólume de uma vida inteira passada a trabalhar no duro para manter a família. / A merda do trabalho roubara-nos o tempo e a oportunidade de nos educarmos juntos e só tínhamos o amor em bruto, demasiado possante para o sabermos dosear. O amor que nos tornava egoístas e exigentes uns com os outros e que levou os meus pais a criarem expectativas impossíveis de realizar para a sua menina trans que oxalá tivesse sido como o Cordobés, um rapazinho valente, um bom conquistador, um homem dos pés à cabeça.” (S. PORTERO: p. 222).


O contexto de emancipação que a autora apresenta quer revelar a estreita ligação que uma independência pessoal cumpre com o contexto do trabalho e as suas condições.


Notoriamente, esta relação acaba por compreender a liberdade segundo um compromisso entre as lutas pelo trabalho e de classe e as lutas pela identidade das pessoas. As condições para que um corpo individual exista em liberdade confundem-se com as condições relativas a um corpo coletivo, que é o do trabalho. Os corpos confundem-se porque a liberdade deve assistir a este movimento entre a comunidade e o individual.


Enquanto que, em Mary&George (numa tentativa de recuperação histórica), os relacionamentos queer aparecem comprometidos com o exercício de um poder absoluto, na série sueca Young Royals (2021-2024), (numa esfera fictícia), o romance homoafetivo principal demite-se do poder. Ou, pelo menos, o protagonista adolescente Simon (Omar Rudberg), que se revela um ativista pelos direitos dos trabalhadores na última temporada, vê-se numa cisão entre aquilo que defende para a sua classe e a sua relação com o príncipe herdeiro Wilhelm (Edvin Ryding). Na verdade, Simon enfrenta e contrapõe-se a uma ideia de privilégio herdado, da qual Wilhem é beneficiado. Foi com ele que Simon inaugurou um romance no contacto dos seus dois corpos. Ele dedica uma canção de resistência ao seu amado, na qual sussurra “Tu foste a minha revolução” (“Men du var min revolution”). Este ato aparece na esperança de tornar o poder mais flexível, que se sabe padronizado e estanque por defeito, o que deixa uma zona de atuação muito diminuta para Wilhelm. Ao príncipe, resta-lhe escolher entre a monarquia e a revolução dele próprio.


Ainda que Wilhelm se apresente como um herói queer que recusa o poder pelo amor e os ideais, essa posição (ainda que revolucionária) não desbloqueia o estado a que pertence de dogmas conservadores. “Eu não sou o teu príncipe herdeiro.”, conclui ele, olhos nos olhos com a mãe, a rainha. O poder deve ajustar-se às pessoas, assim como os contextos devem ajustar-se a todas as experiências humanas e situações. E não são só as cidades que devem tornar-se flexíveis, mas entender-se que a toda comunidade humana é sujeita a variações.


As canções sempre existiram como veículo de revolução e resistência, sejam elas quais forem, tal como a que Simon dedica a Wilhelm. Quando se inventa uma canção, antecipa-se uma revolução. Seja ela feita de estilhaços presentes ou sonhos futuros, ou até de citações do passado. Em cada pessoa pode haver emancipação se houver um verso que resiste, já provou a História, um trautear que se solta de um corpo individual e se espraia no espaço coletivo, no espaço público – seja na cidade ou noutro sítio qualquer.


Cada identidade difunde-se no lugar em que existe, cada pessoa é um signo de espaço público. “Corpos são corpos” que, ao revolucionarem-se, se imiscuem no corpo-lugar em que habitam, e tornam-se nele. E os lugares passam a ter nomes de pessoas, e caras, e vozes: “Em ti oiço a voz da cidade / A luz que beija Lisboa / Amanheceu / No cais da ilusão / E esta canção / Nasceu” (LA FÉRIA, Filipe, 2024, Laura, Lisboa: Showtime, p. 52). Fazer nascer em si uma canção é reclamar liberdade, que condiz com esse amanhecer pelo qual se chama ininterruptamente. É transformar o “tem de ser” no “tens de ser”.


Foto de João Covas

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