TUDO SOBRE A COMUNIDADE DAS ARTES

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Selecione a area onde pretende pesquisar

Conteúdos

Classificados

Recursos

Workshops

Crítica

Artigos
Crítica

“A vida entre nós”: Brizé entre a nostalgia e a desistência

Por

 

JOANA NETO
11 de Fevereiro de 2025

Partilhar

“A vida entre nós”: Brizé entre a nostalgia e a desistência

Os últimos filmes de Brizé têm sido dedicados aos múltiplos impactos do conflito laboral. Basta pensar em “La loi du marché” (2015), “En guerre” (2018) ou “Un autre monde” (2021). Quer o enfoque seja a atividade sindical ou a vida pessoal e familiar, o trabalho tem sido o núcleo central dos seus argumentos. Mesmo em “Quelques heures de printemps” (2012), onde a morte assistida surge como tema central, a relevância do trabalho como elemento estruturante de valorização pessoal é um dos pontos chave do enredo. Em todos eles, o magnético Vincent Lindon encarna mais do que personagens. O ator é, ele mesmo, o clímax de uma mensagem social poderosa, mas também dilacerante.


Este último filme de Brizé, “Hors de saison” (2024), não convoca o confronto com as desigualdades profundas criadas pelo sistema capitalista. É um exercício de nostalgia. O próprio Stéphane Brizé, em entrevista, deixa isso claro. Mas não nos enganemos. A crítica social está lá. O homem dos afetos é sempre este homem do trabalho, no seu contexto social, cirurgicamente desvelado. Brizé não é um Torrentino, tão fascinado pela beleza que, por vezes, fica imerso nela ao ponto da realidade quase deixar de existir ou, pelo menos, de ter importância.


A personagem principal, um ator de cinema, parte para um repouso num hotel, situado numa pequena vila francesa, com direito a talassoterapia e uma vista desafogada. O objetivo é escapar à sua própria fuga. No meio dessa pausa, é interrompido por fãs, funcionárias do hotel e do restaurante, que lhe pedem para tirar selfies até deitado numa maca. E estes momentos são, também, algumas das tiradas de humor do filme.


O motivo da fuga é o medo. Medo de não ser aceite, medo do insucesso. Convidado para, pela primeira vez, fazer um papel no teatro, a personagem principal entra em pânico e desiste. Parece uma revisitação de “Somewhere” (2010), da realizadora Sofia Coppola, que tem por hábito exorcizar os dramas do contexto onde se move, o do cinema e o da origem social de uma família italiana que enriqueceu em Hollywood e apesar de Hollywood... Em suma, Coppola habita um meio privilegiado, onde se compra o conforto e o glamour, mas não se vence a solidão. Parecido, portanto.


Durante a sua estadia retiro, o encenador da peça, a tal da qual o ator desistiu, contacta-o. A escalada de agressividade parece um veneno que se vai libertando. As entrevistas, o anúncio do espetáculo, os restantes atores que deixou pendurados, a indemnização que terá de pagar, todas essas pendências são fantasmas que o assolam.


Como o próprio Brizé confessa, a escolha de Guilhaume Canet para este papel não é ao acaso. Arrisco dizer que a força de Vincent Lindon difícil acomodaria esta personagem.


Guilhaume Canet é um ator francês tão charmoso quanto inócuo, com uma variação mínima de expressões faciais, uma espécie de versão francesa, e melhorada, sim, de um Richard Gere americano, o galã preferido dos filmes de Domingo à tarde, que foi fazendo uma série de filmes mainstream para consumo doméstico. Guilhaume é, sabemos, companheiro da bela e brilhante atriz Marion Cottilard. A transposição da realidade para a ficção é inevitável.   


Até que aparece Alice, interpretada com uma subtileza impressiva pela atriz italiana Alba Rohrwacher.


Numa aldeia pequena facilmente se descobre que está lá um ator famoso. Alice tem a sua oportunidade e procura o seu amor do passado.


Alice, abandonada pelo ator depois de uma relação que a marcou profundamente, acaba por casar com o médico que lhe receitou os antidepressivos. Com ele constituiu família, uma família aparentemente feliz e tranquila. É esse o seu autorretrato, o retrato que faz ao ex namorado naquele primeiro encontro. Mas para que procuraria a pessoa que a abandonou se a felicidade fosse uma certeza? Não fosse o facto de Alice ter permanecido, durante todos aqueles anos, 'cachée', enclausurada naquela vida de província, sem coragem de se libertar, resignada a um casamento letárgico com o seu médico ruivo, não fosse isso continuaria na sua vida pacata. A escolha foi outra.


Alice, professora de piano, que não é capaz de mostrar a ninguém as suas composições musicais, discreta, estaria, como ali, a questionar-se sobre o motivo de ter sido deixada, menorizando-se.

« Il y a des gens comme toi. Et il y a des gens comme moi. Je suis comme ça ». Alice.


Há um momento em que vemos um vídeo de uma aluna e amiga de Alice. A amiga, idosa, depois de anos de abnegação, respeitando as convenções, também a contento da mãe, casada com um homem que nunca amou e vem a falecer, fala do seu percurso até se assumir como é. Ela casa com uma mulher com quem descobre o amor verdadeiro.


A verdade é que aquele ator, deprimido, derrotado, com Alice, liberta do crivo de estrela, que vive a brandura do anonimato com uma leveza que ele desconhece, parece resgatar a sua ligação ao mundo real. O amor antigo está nos olhos dela, vivo e urgente, mas há um espaço entre eles que jamais parece capaz de se preencher. Anos de separação. Uma vida inteira que construíram. 


Na verdade, se Alice está enclausurada também ele está. Com a diferença de que ele jamais estará munido da coragem necessária para fazer algo fora daquilo que a sociedade espera ou que ele se sente capaz.


Alice, evoca-nos a personagem interpretada por Meryl Streep em “The bridges of Madison County” (1995), realizado por Clint Eastwood, que encarna, também, o fotógrafo por quem a uma dona de casa, com uma vida toda dedicada mais aos outros do que a si mesma, se apaixona.


A dado momento, Alice pergunta: "Porque ficaste cá mais tempo?". Ele responde: "Simplesmente fiquei". Em momento algum, ele, como antes, manifesta atribuir sentido ao encontro com ela. Mathieu, a mesma pessoa que se irrita com a música do restaurante e pede para mudar o jazz, que o enerva, acabando por pedir para não ter música de todo, manifesta, a dado passo, um egocentrismo petulante. À pergunta sobre se voltará para casa, ele responde que sim, como se fosse uma inevitabilidade, como se fosse incapaz de qualquer risco. Como se Alice não pudesse almejar a uma hesitação que fosse. Antes, num desabafo passivo-agressivo, ela já lhe tinha dito que usava as pessoas e as deitava fora, deixando fluir um ressentimento antigo.


Quando a vemos na cozinha de casa, depois do encontro íntimo com Mathieu, percebemos que foi, apesar de tudo, capaz de criar o seu novo mundo, mas também está capturada por uma rotina que a parece oprimir. Alice está fechada, mas tem a coragem de pegar no seu destino com as mãos.


Na conversa final, pede a Mathieu que nunca mais volte, mas daí não se retira especial significado. Afinal, a compulsão com que o procurou mostra que, como antes, ele tem mais facilidade em deixá-la do que o contrário, ele está mais confortável com a sublimação da mentira em que vive do que ela. Agora, como antes, ele partirá. Agora, como antes, ela será um risco que ele não será capaz de correr.


Contudo, Alice, surge-nos, no momento final, aparentemente pacificada a dar as suas aulas de piano.


O plano, de cima, do carro na estrada, simétrico, ilustra-nos um tema recorrente, um caminho em que a felicidade pode ser uma estrada paralela ou até uma rua de saída. E quantos seguem por essa via? Poucos.


Mas o realizador tem uma versão mais redentora das suas personagens: “Estas personagens criam as situações para poderem dizer algo a si próprias. Honestamente, é isso que acho belo”.


Brizé parece, mais do que se acomodar na nostalgia, se aproximar de uma espécie de resignação contemplativa. E daí que este filme, que deixa uma dormência quase inesperada, nos faz questionar sobre o que virá deste cinema de um Brizé a envelhecer.


A banda sonora, feita à medida de um lugar de saudade, é do Vincent Delerm.


https://www.youtube.com/watch?v=5xq2_P2Ckfw

Apoiar

Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.

Como apoiar

Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com

Segue-nos nas redes

“A vida entre nós”: Brizé entre a nostalgia e a desistência

Publicidade

Quer Publicitar no nosso site? preencha o formulário.

Preencher

Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!

Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.

Apoios

03 Lisboa

Copyright © 2022 CoffeePaste. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por

“A vida entre nós”: Brizé entre a nostalgia e a desistência
coffeepaste.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile