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A essência como coleção de estados no título temporário de Xavier Le Roy.
Temporary Title (2015) de Xavier Le Roy, não tem figurinos, ou só tem figurinos – depende do ângulo. Nas seis horas em que se pode entrar e sair da sala do MAC/CCB, quinze bailarinos revezam-se por turnos de forma quase impercetível, aproveitando a duração e a camuflagem da nudez. O título temporário (com apresentação única no passado dia 26 de outubro), não se refere apenas às mudanças de nome que os processos criativos conhecem até à apresentação: condiz com a sucessão de estados a que assistimos e que se move entre a literalidade do corpo e o desdobramento.
Pontualmente humanos – serve para confundir o facto de raramente ou nunca estarem de pé –, a atitude dos performers assimila comportamentos e qualidades animais, botânicas, rochosas ou mecânicas. É possível reconhecer os reinos de cada postura sem aceder de forma precisa aos avatares que os animam ou ao momento exato da mudança. Se vemos um leão, vemos um animal doméstico; se são uma pedra, são uma máquina; se é uma planta, é um Homem cansado e sujeito aos elementos. Ou vice-versa.
Não é por isso que não existe uma escrita ou um vocabulário de movimentos em cada pose: há plantas que crescem, são cortadas, respondem ao vento. Os felinos, ou canídeos, parecem livres. Os robots serão o mais próximo da partitura coreográfica – ou é precisamente o efeito de uma dança mais autómata a minar a perceção e a fazer acreditar na programação.
Na troca de atitudes coreográficas que sustenta uma distinção e convergência das naturezas, negoceiam às tantas, como feras que falassem, a construção de uma figura geométrica no ar (“We have something small”, “with a corner”, “It’s a triangle, small and filled”, “fancy green”). Especulam-se modos de produção de saber, transmissão e adaptação. A ausência de contornos questiona a noção de autenticidade e a posição privilegiada para experimentar o sentido.
Matilha, bando ou floresta, projetamos cenários no tapete cinza que ocupa grande parte da sala e funciona como uma croma. A paisagem mental ganha um aspeto tridimensional, uma progressão no terreno e no tempo: consoante o modo coletivo, o espaço pode ser chão, casa, jardim ou fábrica – convivência e sobreposição que recriam habitats e dão um ar performativo à «Natureza» como convenção e arbitragem.
Neste ambiente de «obra aberta», transações subtis organizam a composição, o espaço e o público. Como um estrangeiro a pedir direções, os performers espalham-se, gatinham ou arrastam-se para as arestas, onde se vai arrumando quem assiste. Apresentam-se e interpelam: “Olá, o meu nome é […], posso fazer-te uma pergunta?”. Distribuem questões como “O que é curares-te?” “O que é aprender?” “What’s growing? Teaching? Healing? Aging? Travelling? Falling in love?”, “O que é que vês neste sistema de peça?” “O que é dançar?”.
Ao nosso lado alguém desabafa: “É a correria do dia-a-dia para trabalhar e viver”, como uma espécie de dança invertida dos dias em que o corpo, mais vazio do que nu, é guiado autonomamente – atirando para a assistência a ambiguidade entre seres e estados, dados e máquinas. Quando terminam as conversas retomam as quatro patas, a formação inicial e o grupo, num reset comportamental que deposita as respostas e recarrega perguntas.
Há um lado curioso e protocolar na necessidade de se apresentarem em nome próprio antes de conversar, como se fosse preciso recuperar a credibilidade da identidade e suspender por instantes a proposta, a fluidez e o jogo de equivalências.
Mas se esquecermos a literalidade das apresentações e assumirmos que todas as coisas têm os seus aspetos sensíveis, sencientes ou de funcionamento, também podemos ouvir as perguntas como curiosidades não vividas e não experimentadas pelo corpo ocupado, planta, ser ou coisa, que se dirige a nós: como ama um robot? como viaja uma árvore? Há pessoas que falam com plantas, animais e algoritmos.
Para lá de taxonomias, a proposta recorda a identidade que surge na relação com o outro. Religa o que há de comum entre seres, camadas do sujeito e o início prático da Humanidade.
A nudez de Temporary Title tem esse aspeto sofisticado: desaparece no meio do que representa (um cão, uma flor, uma máquina – estão nus?), e aparece em quem assiste. Ouve-se às tantas de um visitante, “Aquela senhora está mesmo nua, não está?”, síntese de um quadro que supera a simplicidade do aparato.
Esse espanto fala da sensação de estar vestido e nu ao mesmo tempo, provocando uma inversão de forças. Posta como consciência, sugere que só estarmos vestidos pode devolver a nudez como pornografia. Se o público é livre para entrar e sair, aqueles corpos não parecem totalmente livres dos nossos olhos (ilustrado pelo jogo silencioso entre visitantes e vigilantes do museu, para contornar a proibição expressa de fotografar). De certa forma, se o nu é a única condição comum a qualquer corpo, então não seria «nudez». A performance (ou exposição) vai-nos aproximando dessa possibilidade, tirando partido de um lugar tradicionalmente associado a inferioridade civilizacional; ou do gatinhar como etapa primitiva a meio termo.
A horizontalidade também recorda a relevância histórica da verticalidade na dança clássica, refutada pela expressão moderna. De forma mais abstrata, questiona a estratificação social a partir de relações verticais e românticas. Como às obras de um museu, coloca-se o problema do estatuto: já seria Arte antes de o ser? Já estariam nus antes de haver um nome para não ter roupa?
Atravessar o status dos objetos e da dança é um cruzamento pertinente para contrariar a fixidez de coleções permanentes e emancipar as obras, movimento particularmente simbólico no velho-novo MAC/CCB. Exemplo das dinâmicas, a escultura de luz apagada de Dan Flavin, na parede durante a performance, ou a estrutura de aço de Donald Judd, por cima de um vértice do tapete – encosto apetecível para a assistência enquanto o vigilante repete “encostem-se antes aqui, isso é uma obra de arte”. Os performers parecem ouvir e soltam: “Are we gonna get in trouble for touching the art?”.
No final juntam-se a nós nas arestas da sala e vestem-se. Aplaude-se com a ambiguidade de premiar os artistas, como o regresso à performatividade da roupa. O hábito que cobre o estranho.
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