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Aulas de afogamento

18 de Junho de 2021

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Aulas de afogamento
Por Keli Freitas

Nunca fui boa em natação. Eu afundo. Durante algum tempo, em pequenas, eu e minha irmã fizemos aula de natação. Ela descobriu um grande talento inato. Eu descobri que afundo.

Há poucos dias afundei no mar da praia da Laginha, na ilha de São Vicente, em Cabo Verde. É um mar de uma beleza quase irreal, uma piscina eterna, sem ondas, como que saída da tua barra de filtros do instagram. É tão boa e mansa que o pessoal vai pra dentro d’água colocar a conversa em dia. Fui tentar socializar dentro d’água também. Éramos 3: eu e minhas duas amigas septuagenárias. Foi um naufrágio seletivo: não consegui dizer nada, apenas sobrevivi. Já elas, falavam, gargalhavam, gesticulavam e lembravam-se de tempos passados como se estivessem na sala de casa, ou sentadas em uma mesa de bar. Foi fascinante enquanto durou: pouco.

É engraçado que, apesar deste e de outros desígnios incontornáveis da minha natureza, eu tenha me metido em uma profissão que é o equivalente, justamente, a inventar maneiras de atravessar o oceano com um piano às costas. Mas, olha, calhou. Quando preencho os formulários de hotel e escrevo ATRAVESSADORA PIANO COSTAS as senhoras da recepção ficam confusas pois estão mais habituadas às dentistas, mas não há nada a fazer: é da minha natureza ir contra a minha natureza. É da minha natureza fazer teatro.

No senso comum, como toda a gente já deve ter percebido, a palavra teatro é usada como equivalente à palavra mentira. É frequente ouvir-se coisas como: “Aquilo era só teatro”. Ou “Não passava de teatro”. Ou “Parem com esse teatro”. Ou “Em princípio achamos que era a sério, mas afinal: teatro”. Eis um dos maiores equívocos sócio-histórico-político-semânticos de sempre: aplicar justo em seu sentido oposto o vocábulo que designa, por vocação, uma das mais preciosas ferramentas de busca e descoberta daquilo que, em nós, é verdadeiro.

Estava nas notícias esta semana: Michael Packard, um pescador de lagostas, sobreviveu após ficar 40 segundos dentro da boca de uma baleia jubarte. A imprensa mundial está a dar destaque ao que aconteceu a Michael; eu, ainda impactada com o que aconteceu a esta baleia. Qualquer pessoa que já se tenha engasgado com uma espinha de peixe durante uma refeição há de entender o que quero dizer.

Se me telefonarem e eu não atender, não se preocupem: tenho engolido muita água e pode dar-se o caso de estar atravessada com uma baleia jubarte, a fundo.

Parece até mentira. Mas não: é teatro.

Keli Freitas (1983, Brasil) é criadora, dramaturga e actriz.
Graduada em Letras pela PUC-Rio e mestranda em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa.

Esta iniciativa resulta de uma parceria Coffeepaste / Prado. A Prado é uma estrutura financiada pela DGArtes / Governo de Portugal para o biénio 2020/2021.

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