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Frente-a-Frente assume uma forma entre o concerto e a performance teatral. Duas figuras, numa mímica quase fraterna, transportam-nos por uma viagem musical pluricultural. As transições entre os diferentes segmentos musicais compõem um fluxo contínuo que funciona como uma longa canção de intervenção, numa apropriação dinâmica de música popular. Num mundo onde as incertezas e o medo da impotência podem surgir como algo paralisante, Frente-a-Frente é um lembrete de que a soma de muitas vozes unidas pode transformar-se numa grande força. É um convite para cantar, tocar. Resistir. Não é, de todo, o tipo de espetáculo que se ancora na racionalidade: é direto e vibrante. O humor subtil nasce da naturalidade de ações cénicas despretensiosas, que convidam à empatia, provando que os jogos mais básicos são os mais capazes de gerar conexões profundas.
O grande pano laranja brilhante que delimita o fundo de cena, com quatro fitas brilhantes prateadas e amarrotadas, chega a ser usado como instrumento de percussão. A humildade com que Inês Campos e Vahan Kerovpyan apresentam o seu trabalho é confirmada pelo ponto de partida do espetáculo: uma personalidade portuense, Augusto Ramos, habitante do bairro da Pasteleira, com uma paixão improvável pelo cinema indiano. Ramos Indiano, como é conhecido, é uma celebridade local que tem um acervo de bandas sonoras de Bollywood, com as quais se diverte cantando, tocando trancanholas e animando quem o ouve. É uma bela homenagem a uma personagem que inspira a sua comunidade e que funciona como um reflexo em pequena escala de como alguém, com a sua paixão, é capaz de apaixonar a humanidade.
Trabalhando através de uma apropriação de variadas influências musicais (indianas, portuguesas, arménias, entre outras), de forma lúdica mas atenta, Inês Campos e Vahan Kerovpyan imprimem ao espetáculo uma autenticidade que reflete paixão e canta liberdade. Uma canção ou um gesto passam a possuir a força suficiente para nos transportar à sensação de fazer parte de algo maior, colectivo, transformador. A lógica de canção de intervenção que atravessa o espetáculo faz com que seja impossível não evocar o imaginário da Revolução dos Cravos e do nascimento da democracia portuguesa, pelas composições inspiradas em José Afonso, tanto musicalmente como nos versos: “se há salário mínimo porque não salário máximo?”, “a censura é disfarçada, quase não se nota nada” ou “casa com um / casa com dois / casa com muitos / muitos sem casa”.
O espetáculo cita, explora e comenta estas temáticas e ideologias sem chegar a ser dogmático ou propagandista. O foco está na criação de um divertimento elaborado a partir destas influências e materiais. Apesar dos criadores serem demasiado jovens para terem vivido o PREC - um período histórico marcado por ter sido o expoente da utilização da cultura popular como modo de transmissão de ideias - o panorama atual também se está a reinventar como modo de despertar consciências e reivindicar uma sociedade mais justa e igualitária. É talvez por isso que faz tanto sentido reinventar a canção de intervenção, e é assim que estes criadores provam que a propriedade sobre a cultura popular é intrínseca a um povo, faz parte da sua memória coletiva, explica-nos a nossa natureza.
Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 15 e 16 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de frente-a-frente, de Inês Campos & Vahan Kerovpyan, e Kabeça Orí, de Aoaní & Joyce Souza / Associação Orí.
Foto por Bruno Simão
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