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Cartas ao Panteão

Cartas ao Panteão (XXI)

Por

 

Ricardo Cabaça
26 de Julho de 2024

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Cartas ao Panteão (XXI)

Meu caro Dagerman,

 

Escrevo para ti com algum atraso, é certo, mas sinto que esta carta é justíssima pela minha escolha e também pelo tempo em que o faço, há decisões que demoram mais a ser tomadas, não sendo por isso menos importantes, pelo contrário, esta missiva é das mais profundamente dolorosas e ao mesmo tempo, daquelas que trazem toda a justiça ao mundo.


Sempre fui um admirador da tua obra, desde o dia em que abri pela primeira vez um livro teu, o inesquecível A ilha dos condenados. Depois disso vieram todos os outros, até ter lido, creio, toda a tua obra. Por um lado, conhecia um pouco mais de ti a cada página que lia, porém, a tua biografia trazia dados que passaram a ser igualmente importantes para mim, para que esta relação de amizade ganhasse uma dimensão estelar. Prometo que não vou falar do teu fim trágico, sobretudo porque não condeno em absoluto tudo aquilo que decidiste para a tua vida.


Esta carta aprofunda ainda mais a nossa relação, não só por estar a escrever para ti, mas sobretudo pelo meu momento atual enquanto leitor e escritor. Comecemos então pela última, troquemos um pouco a ordem natural das coisas. Desde cedo que me interessei pela Segunda Guerra Mundial, não só pela sua dimensão gigantesca de barbárie e desumanidade, como também pelo lado irreal que envolve todas as ações nazis. Perguntamo-nos amiúde como é que foi possível perpetuar o Holocausto durante tantos anos, aparentemente com a inação de tantos alemães, dos países poderosos, das instituições que podiam ter feito alguma coisa para acabar com tudo aquilo. Como é que foi possível, que um país civilizado como a Alemanha tenha cometido tantos crimes hediondos? A arte e a filosofia incumbiram-se da tarefa de tentar entender o pesadelo, de revelá-lo até ao mais ínfimo pormenor, mas parece que é sempre tão pouco.


Não me alongo mais sobre o tema, interessa-me falar de ti e da forma como estás na minha vida presente. Um dia li o teu Outono alemão, e eu, que era contra o povo alemão da época, mesmo que as generalizações sejam sempre erradas e abusivas, persistia no erro de condenar os alemães como se todos tivessem as mãos e a alma arruinadas pelo sangue. Na verdade, ao ler o teu livro, ao ler todas as descrições que fazes da miséria do povo alemão, senti de imediato que era o meu coração que lia as tuas palavras, ao invés de um cérebro que pareceu ficar paralisado com o quadro que se me apresentava: a fome, a lama, as ruínas, o cheiro a morte dos cadáveres nos escombro, a miséria de um povo que não podia alimentar as suas crianças. Confesso que é um dos livros da minha vida porque foi uma lição de humildade e de inteligência, ensinou-me a ter a capacidade de olhar mais além, talvez subir a montanha para ver o que está a acontecer do outro lado, testemunhar o que realmente existe para lá daquilo que os meus olhos não veem. Neste momento estou a ler Estufa com ciclâmenes de Rebecca West, e é sem dúvida outro livro que nos traz uma visão perturbadora da história, um daqueles livros que narra um período histórico que ninguém deveria esquecer: os julgamentos de Nuremberga.


Através das palavras de Rebecca West e do seu pensamento, apreendemos todo o horror que os alemães viveram depois do fim da guerra, não só a fome ou a miséria, não só a escassez ou a humilhação, mas o domínio que sofreram porque quatro potências dividiram o seu país em regiões controladas por cada uma delas, sendo que uma parte da Alemanha ficou sob domínio comunista durante décadas. Enfim, a literatura traz-nos a luz que falta ao mundo.


Meu querido Stig, falei-te do horror da história e da minha experiência enquanto leitor, falta-me abordar o texto que estou a escrever neste momento e que imediatamente consigo traçar uma ligação estreita com uma das tuas obras. Eu tinha acabado de ser pai quando consegui, finalmente, comprar o teu livro de contos Jogos da noite. Uma vez mais um livro magnífico, escrito com toda a crueza que te caracteriza, por certo não seria uma desilusão. Eu tinha acabado de ser pai, estava sensível como nunca tinha estado em toda a minha vida. Seguia imparável na leitura dos teus contos, tão imparável que a travagem foi brusca e o meu corpo ficou cheio de dores, ou melhor, fiquei com a alma profundamente abalada durante umas longas semanas. Matar uma criança é um conto curto, um texto que se lê em poucos minutos, mas para mim, tal como no tempo da história, parecia que o tempo não passava e que os enjoos se multiplicavam dentro de mim. Ler um conto em que uma criança sai para a rua brincar e acaba atropelada por um carro conduzido por um homem feliz, é uma tortura demasiado pesada. Tinha acabado de ser pai. Durante muito tempo fiquei agoniado com as imagens que o teu conto trazia, o carro cada vez mais próximo e a criança distraída na sua brincadeira. Hoje abri o livro novamente e vi que o papel que usei para marcar o livro está na primeira página do conto seguinte. Lamento não ter continuado a leitura. Deixo o livro em cima da minha secretária para terminar a leitura adiada.


Enfim, talvez para exorcizar todos estes espíritos malignos, coloquei uma história que se passou com o meu filho numa peça que estou a escrever e que vai estrear em setembro. O texto chama-se Um coração não bate sozinho num bosque idílico, e talvez pela primeira vez na minha carreira queira apenas falar de amor, sem que ele seja trágico ou tenebroso. Quero falar de amor para curar o coração do mundo.


Acredito que colocar a história do meu filho também é uma forma de reconciliar-me com o teu conto.


Querido Stig, obrigado pela tua companhia.

 

Um abraço fraterno do teu amigo e admirador,

Ricardo Cabaça

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