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Dress code: fim do mundo

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Duarte Amado
2 de Março de 2025

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Dress code: fim do mundo

Longe dos tempos em que fazer ‘só para chamar a atenção’ era defeito, Crice Crice Baby monta um leilão da atenção em que a identidade é capital artístico, um ativo volátil, e o narcisismo reinventa-se em loops de autorrepresentação. A performance – apresentada no TBA, Lisboa, entre 29 de janeiro e 1 de fevereiro –, é um jogo tenso entre biografia e ficção, resistência e exaustão, espetáculo e mercadoria. Quando começa, já começou: o relógio projetado ao fundo da sala marca uma contagem decrescente que se sobrepõe ao tempo real e absorve a entrada do público como uma presença a rentabilizar. O compasso de espera, que afinal já é espetáculo, serve para espicaçar a ansiedade genérica do público por arte a entregar em tempo útil, e o revés da vida curta das obras, enquanto Cecília Henriques, Raimundo Cosme e restantes colaboradores (na novilíngua do trabalho), preparam-se para explorar os limites da corrida para justificar a própria existência.


Essa ansiedade abstrata e concreta – a necessidade de apoios para criar, a incerteza do futuro artístico, a chegada de um filho, a vida medida pela capacidade de gerar engajamento, de entreter – engendra um dispositivo eficaz, esse adjetivo problemático. Trampolim, pranchas, salto à corda, bicicletas fixas, cobertores térmicos, óleos corporais, luzes de aquecimento, o arsenal gímnico servirá para fabricar o máximo de roupa interior ensopada para venda em tempo real, na sala ou em TastySlips.com – site em que roupa íntima usada é transacionável e as categorias incluem “desgaste durante o desporto”, “batom” ou “vestígios de caviar”. O QR code para aceder à página está estrategicamente colado na ponta dos assentos do teatro, entre as pernas, literalizando a te(n)são do consumo, a self-pornification, e ironizar a economia circular.


O palco é um ginásio absurdo onde se sua para vender cuecas, depois seladas em plástico, e caucionar a continuidade do próprio espetáculo. Um sistema autossustentado de conversão da atenção em mercadoria e do corpo em fábrica de conteúdos e gestos vazios.


Quando uma das performers veste uma versão comestível para juntar à montra, os restantes formam um muro improvisado de toalhas à volta, como quem troca de roupa na praia, aspeto dessa dinâmica paradoxal de exposição e anonimato: privacidade genuína, performada, ou pronta para subscrição premium? Produto ou performer? Influenciável ou influencer? Quem vê? Quem consome? Quem cria quem?


As posições diluem-se numa performance praticante dessa intimidade sem proximidade. Entre a escatologia da novidade e a bruma íntima. De imagens tão suadas como asséticas, em vácuo – afinal destituídas de Corpo.


O convidado em cada sessão (Aurora Pinho, Isabel Coelho, Francisco Rolo, Danilo da Matta), segue instruções que apenas o próprio ouve em headphones, noutro aspeto gráfico desse teatro expandido, sem grandes pontos de orientação ou relação. Estar ‘Ao vivo’ é apenas o nome de uma ignorância sobre os modos de produção da presença. Uma especulação entre a autoficção e a vida-própria.


O concerto do duo punk Aggressive Girls que acontece no meio disto tudo, acrescenta um nível de sobrecarga à operação. Assistir torna-se uma espécie de scroll entre distrações, para gerir o feed: concerto, performance, engenharia do suor. Cada opção de ver serve para refinar e fragmentar os conteúdos. Aplacar a ira do algoritmo.


A raiva eufórica da banda (“Paga o que deves!”) reforça essa fúria creditícia da performance. Diz que o público é devedor e tem de licitar pela atenção que recebe. Para o artista não há meio termo, como não há meio-Like (“Eu não vou parar até ser feliz! Eu não vou parar até ser livre! A minha vingança é ser feliz!”).


O título da performance (que arriscamos entre crisis, cry, price), traduz o amargo sucesso dessa economia emocional, em que cada trauma pode ser monetizado; cada lágrima convertida em engajamento; cada identidade cotada no mercado da autenticidade. #traumadumping #livemeltdown


Esse (in)sucesso calculado do espetáculo corre um risco perverso: cada cueca vendida aumenta o seu valor simbólico à custa de esgotar progressivamente o gesto performativo. Entre o cinismo e a rendição, a sobrevivência e a cumplicidade, a performance exige que os criadores se sujeitem às próprias regras, ponham a biografia a render, performem a exaustão e submetam à profecia de que tudo pode ruir se os Mercados falharem. Por vezes pressente-se um genuíno esforço, talvez menos irónico, de aproveitamento de todas as ações e conversas.


O contínuo aponta à falácia do progresso infinito e à precariedade de um sucesso que devora os seus filhos, como o relógio à entrada: quanto mais se dá, mais se exige. Quanto mais se produz, mais irrelevante se torna o trabalho. Todo o esforço é consumido pela eficácia ou não da venda.


O desespero final para vestir um par congelado, dotando o autógrafo biológico de narrativa comercial, ilustra esse desgaste físico que não se basta a si próprio: tem de vencer na vida. No sistema. Os meios são ancorados nos fins. Mas o fim não existe se não estiver ninguém para ver.


Foto: © Joanna Correia

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