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Há ofícios que desenham um chão comum para nos familiarizarmos com os deuses que não temos. Em tempos que desafiam a diversidade, a inclusão e a democracia, é preciso defender quem ergue essa vital “casa térrea”.
A mediação cultural e artística constitui, hoje, uma função estrutural na dialéctica entre democratização e democracia cultural, não apenas em contextos institucionais e equipamentos culturais públicos como no seio do terceiro sector, em práticas educativas não formais e informais, na intervenção social e comunitária, e também na própria esfera comunicacional e mediática, de cariz generalista ou especializada.
Quer os assumidos mediadores, de formação (integrados ou não em estruturas culturais, estatais e independentes), quer outros agentes individuais (artistas/criadores, personalidades públicas) que podem desempenhar, em enquadramentos e formatos diversos ligados à cultura e às artes, um papel de intermediação pedagógica, crítica e criativa, têm vindo a afirmar-se, progressivamente, como um necessário, estimulante e expansivo segmento sócio-profissional na contemporaneidade.
Em Portugal, foi em contextos museológicos ligados às artes visuais que as práticas de mediação cultural e artística (então integradas nos chamados “serviços educativos”) começaram a afirmar-se e a ganhar maior expressão. Esse movimento intensificou-se a partir dos finais do século XX e ao longo das duas últimas décadas, fruto também das políticas culturais públicas que se foram implementando, tendo a mediação chegado também aos ambientes biblioteconómicos (com a assunção da importância da promoção e mediação do livro/leitura), patrimoniais e ao domínio das artes performativas (com uma expressão porventura mais vincada na área musical) – a que se soma a sua vertente cultural num sentido mais amplo, a nível do reforço do diálogo intercultural e da coesão social.
No plano formativo, o surgimento de uma oferta específica neste campo por parte de várias instituições universitárias, bem como de acções/cursos intensivos ministrados pontual ou regularmente por outras entidades – veja-se o recente caso do lançamento do curso de mediação cultural e artística pelo Plano Nacional das Artes com a Direcção-Geral das Artes e o Instituto Politécnico de Leiria) –, tem vindo a contribuir para uma maior visibilização e reflexão crítica em torno desta profissão. Ainda assim, é preciso reforçar, diversificar e disseminar geograficamente mais a formação académica nesta área, não apenas aplicada à cultura e às artes, mas também nos processos de mediação relativos à ciência, à saúde mental, ao ambiente/ecologia, à literacia financeira ou à inteligência artificial, só para dar alguns exemplos mais prementes.
A democracia, enquanto sistema que preconiza a tolerância, a liberdade, o diálogo (crítico), a equidade e a participação, coloca desafios significativos à figura do mediador cultural enquanto operário que erige pontes e horizontaliza as relações, enquanto passaporte socializador e inclusivo. Mediador: mediar a “dor” derivada da distância, da ausência de diálogo, da indiferença/desconexão, da não abertura ao outro, do preconceito, do desconhecimento, do isolamento, do hermetismo, da inacessibilidade.
Em termos de percepção social e integração laboral, persiste ainda – é inevitável sublinhá-lo – alguma falta de dignificação e valorização públicas, por desconhecimento, deste perfil e função profissionais. Isso reflecte-se no facto de muitas entidades públicas (autarquias) e estruturas independentes não disporem ainda, nas suas equipas culturais, de profissionais desta área específica (ou numa habitual precaridade associada à mesma), a qual também é, por vezes, ainda confundida com comunicação. Bastará um olhar mais aturado sobre as redes culturais mais recentes do país – a nível, por exemplo, de teatros ou de centros de arte contemporânea – para verificar que a mediação (especializada) ainda constitui uma das funções menos representadas nos quadros de pessoal dessas instituições, isto apesar da gradual mudança de paradigma a que se vai assistindo.
Há quadrantes artísticos em que se constata claramente a necessidade de maior aposta na mediação em Portugal, como sejam a dança (clássica e contemporânea), a ópera ou a performance e as práticas multidisciplinares. Em termos programáticos, trata-se de áreas disciplinares mais exigentes em termos de captação e fidelização de públicos, as quais carecem, pelas suas especificidades formais, tipos de linguagem, temáticas e níveis de complexidade, de um investimento efectivo na capacitação de profissionais na vertente da mediação. Sem o papel facilitador destes, tornar-se-á mais difícil e moroso consolidar, de modo sustentado, boas práticas de fruição e participação culturais.
Ser mediador é, antes de mais, ser esponja, é ser ledor e ouvinte do mundo (esta última que o filósofo Byung-Chul Han acredita ser uma profissão no futuro) e das suas inquietações, nuances, gritos-silêncios e (contra)danças. Um profissional reflexivo, em suma. Além deste alicerce, três traços se esperam dele: consistência (dominar com solidez as matérias, ser rigoroso e coerente), atractividade (gerar entusiasmo, estimular o envolvimento) e transversalidade (capacidade de ser holístico, versátil, desdobrável). Pois ele é também um produtor de conhecimento, que, ao construir espaços de encontro colectivo e experiências significativas, desenha mapas partilhados de sentido.
Daí que falar de mediação também seja pensar em modalidades de criação. E não apenas numa perspectiva estética, mas num sentido mais lato: na formação de vínculos e na criação de discursividades, possibilidades de encontro/partilha, experiências e saberes heterogéneos e heterodoxos.
Numa sociedade em que imperam a abundância e prolixidade informacionais, o mediador, a partir da sua constante investigação-escavação do real, sabe filtrar e operar uma triagem simultaneamente pragmática e criativa face à avalanche de estímulos e sinais que o circundam. Porque reflectiu criticamente sobre o que absorveu e consegue inclusive questionar o seu próprio saber, pondo-o em causa, desdobrando-o e incitando os outros a “desaprender” melhor (o poeta Manoel de Barros dizia que “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”), a desconstruir visões enraizadas, a desformatar comportamentos, a estabelecer associações menos prováveis, numa lógica não necessariamente alinhada, canónica ou consensual.
Em vez da tradicional transmissão, a priori, dos saberes, o mediador almeja a sua construção/reelaboração colectivas, o tensionamento, a aceitação do dissenso, a diferença, o acidente, os pontos cegos. As indagações, as incompletudes e o acto de questionar (mais do que adjectivar ou conceptualizar de forma rígida) inscrevem-se, assim, no mesmo movimento. No fundo, o desafio maior é: como abandonar as cartilhas e abrir-se às partilhas?
Isto porque a mediação cultural e artística não passa somente por fornecer pistas e chaves interpretativas, por aclarar narrativas e imaginários, por propor aproximações alternativas, por criar sínteses sobre uma temática, criador ou objecto (estético ou outro); também consiste, muitas vezes, numa busca incessante por novas ou renovadas perguntas (ao invés da habitual obsessão por respostas), por “gatilhos” semânticos, por outros modos de interrogar o “eu” e a realidade envolvente. Criam-se, deste modo, circuitos de relações e deslocamentos perceptivos: “No que é que este espectáculo me afecta ou não?”; “O que há nele que dialoga com a minha experiência de cidadão e sujeito no mundo?”; “Porque me emociono?”; Por que razão acho este trabalho tão estranho?”; “Porque me sinto confrontado?”; “Porque é que vim ver esta peça?”; etc.
Mediar é igualmente esse exercício de liberdade de expressão (por si só e no que provoca no outro) que privilegia argumentos e contrapontos, que não foge do contraditório nem se fecha em câmaras de eco onde raramente se é confrontado com mundividências diferentes, mas apenas com o que já se gosta e concorda (como acontece amiúde com as redes sociais). É não fugir dos assuntos difíceis e mais “intocáveis”; é ousadia, risco. A criatividade e a democracia carecem, e muito, desse pensamento-acção divergente.
As práticas de mediação na cultura e nas artes adoptam estratégias que, sem imposições ou paternalismos, têm no seu cerne outra ferramenta cívica essencial à democracia: o contributo para o florescimento de espíritos críticos e autónomos, que têm algo a dizer, que conseguem dialogar respeitosamente e defender com firmeza e coerência uma posição, que lêem nas entrelinhas e identificam mensagens complexas ou enviesadas, que dominam os labirintos e camadas do registo subliminar, que destrinçam percepções de realidades (temário tão actual), evitando manipulação, alienação e anulamento de mentalidades e comportamentos. É também através dessa constante afinação do olhar (que a mediação proporciona) que se constrói uma cidadania plena.
É por isso que a mediação é ético-política – sem pretensões, contudo, de se lhe atribuir uma função primordialmente redentora ou socialmente salvadora –, pois é um catalisador de democracia. Daí a sua responsabilidade (partilhada com outros profissionais da cultura) relativamente às questões do acesso e equidade, através da adopção de uma linguagem clara e inteligível, e da convivência com outras estratégias e ferramentas que permitam a participação de minorias étnicas, grupos socialmente marginalizados e em situações desfavorecidas, ou pessoas com deficiência. Para convocar a pluralidade e abrir espaços de coexistência.
A acessibilidade física, social e intelectual é, assim, uma preocupação central do mediador cultural, pois este funciona como uma espécie de barómetro sociológico de um território-comunidade no que toca aos seus públicos potenciais, regulares, ocasionais e “não públicos”, e suas necessidades e expectativas. O seu ofício tem essa matriz relacional, de interacção imersiva e empática com o outro, instaurando-se uma dramaturgia do convite e do encontro: o que se tece juntos, o que se abre, o que se desdobra, o que se dialoga, o que se aprende juntos?
Conduzido por uma ética do cuidado, o mediador acaba activando também as potencialidades de uma informalidade focada, propondo mecanismos de facilitação e inclusão em função do perfil dos seus destinatários sem, contudo, os menorizar/infantilizar ou banalizar os conteúdos veiculados. Daí que a competência da gestão interpessoal seja tão relevante na sua forma de ser-estar: a capacidade de (se) integrar/adaptar, de “ler” o outro e captar as suas nuances, motivações, alentos e idiossincrasias, as referências que lhe são familiares, mas também – numa desejada contaminação recíproca – de incorporar visões dos públicos nos seus discursos, ciente de que a negociação também é importante para o sucesso da comunicação.
O mediador é um profundo e actualizado conhecedor do ecossistema cultural e artístico (circuitos, processos criativos, redes, contextos, equipamentos), mas não se reduz a uma bolha, tendo uma visão sistémica da realidade, em multicamada. Numa triangulação dinâmica com a comunicação e a programação, o seu campo de acção – amiúde disputado entre educação, curadoria e pesquisa – extravasa a criação e formação de públicos, sendo fundamental em projectos de arte participativa, no enraizamento local nas comunidades e bairros, e no desenvolvimento e coesão sociais dos territórios.
É fulcral que a figura do mediador volte à esfera mediática, aos meios de comunicação audiovisual (mormente à televisão estatal), mas também aos contextos não convencionais e mais carenciados, sempre numa lógica de serviço público, de modo a quebrar barreiras e a atingir e impactar mais pessoas. Veja-se, por exemplo na área musical, o relevante trabalho de mediação (in)formal que tem sido feito, em moldes e abordagens diversos, por reconhecidos “contagiadores” como Martim Sousa Tavares, Tiago Pereira, Paulo Lameiro, Joana Gama, Helena Rodrigues, Vítor Belanciano, Ricardo Farinha ou Hugo Ferreira, entre outros.
Duas notas finais. Uma de crença, para reiterar – sem descurar os inegáveis benefícios da especialização – a importância da versatilidade, da maturação que deriva também de desvios/erros/riscos e da experimentação alargada e generalista no trajecto do mediador, para uma tendencial maior criatividade e flexibilidade no seu labor. Outra de inquietação, para alertar: grassam na actualidade posicionamentos político-ideológicos que ameaçam os princípios da inclusão e diversidade, sendo fulcral preservar, assertiva e convictamente, a dimensão democrática da acção dos mediadores culturais e artísticos. Para que, como diz certa canção do Pedro, “nunca caiam as pontes entre nós”.
Paulo Pires é gestor cultural e programador.
Trabalha, desde 2023, no Ministério da Coesão Territorial, inicialmente como assessor da Presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I. P., e actualmente como director da área da Cultura.
Além de professor/formador, músico e mediador, desempenhou funções de direcção artística e programação cultural em autarquias como Loulé e Coimbra.
Foi director do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, assessor do actual Director-Geral das Artes e adjunto da ex-Ministra da Cultura, Graça Fonseca.
A sul, no Algarve, foi também coordenador da programação cultural no Município de Silves, programador na Fundação Manuel Viegas Guerreiro (Loulé) e investigador, na área etnomusicológica, no Centro de Estudos Ataíde Oliveira da Universidade do Algarve.
É autor de inúmeras conferências, artigos e livros sobre cultura, artes e criatividade.
Foto: © Paulo Pimenta (peça da Companhia Olga Roriz "A hora em que não sabíamos nada uns dos outros")
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