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Fumo e Espelhos

Enigmas Espelhados

Por

 

Ivo Saraiva e Silva
26 de Dezembro de 2024

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Enigmas Espelhados

O enigma de uma pessoa passa por um ensaio do seu próprio espelho. Este será o mistério que acompanha o seu percurso: como compor um reflexo privado e lidar com ele? Pode ser uma construção individual ou em comunidades, mas que implica sempre o confronto com outros reflexos variantes. Isto é, todas as pessoas são similares, mas permitem-se a adotar as suas variações singulares. No entanto, e acontece não raras as vezes, a pessoa pode observar-se infeliz com o espelho que criou; ou ainda com o espelho que representa, porque o reflexo que cada um constrói tem sempre alicerces nas comunidades e nas culturas em que se nasce, e é dessas que herdamos o modelo para o moldar, ao reflexo.


No filme Sinónimos de Nadav Lapid, o protagonista Yoav tenta sobreviver em Paris, recém-chegado e descontente com os conflitos políticos do seu país de origem. Enquanto avança pelas ruas parisienses, procura uma outra linguagem (que não a do passado que tenta esquecer) nos cheiros da cidade, nas suas paisagens, na arquitetura e, como é evidente, na sua gramática. Repete palavras à medida que repete passos, e cada passo parece ser sempre uma queda, porque os joelhos fletem-se à vez para caminhar, e o seu sotaque denuncia o travo do sítio que lhe calhou em sorte nascer. Ele procura moldar a oralidade ao mesmo tempo que ambiciona formatar o corpo e a expressão gestual para ser aceite.


Nesta narrativa em específico, a busca de Yoav por uma outra identidade que não aquela anterior com a qual não se sente representado, fá-lo voltar uma e outra vez à sombra do seu passado. Não porque o queira, mas porque todo o contexto de receção deste novo lugar a que chega lhe impinge a legenda de estrangeiro, recordando-lhe as suas caraterísticas israelitas. O protagonista apercebe-se que todas as oportunidades de inserção em que é colocado – seja nas relações de amizade, de trabalho, etc – deve-se ao facto dele ser tido como O outro. Ou seja, esta circunstância acaba por revelar uma perversidade nos afetos, por parte destes recetores, burgueses, onde o interesse em Yoav passa por um certo desejo, que se manifesta através de uma hospitalidade – mas que, em bom rigor, mascara um certo abuso de poder.


A cena da sessão videográfica em que o protagonista é vítima de uma exposição excessiva, quer ao nível físico quer psicológico, retrata esse abuso de poder ante uma vontade imensa de pertença: mostra o interesse quase obcecado de um realizador em ouvir um discurso de teor sexual em hebraico, pela boca de Yoav, enquanto este último se penetra com um dedo no ânus. Nesta cena, depois de mais ou menos uma hora e vinte de filme, Lapid revela um dos enigmas principais da obra, através da gestão dos corpos e dos adereços eletrónicos, auxiliando-se de um truque descendente do meta-cinema. O corpo nu de Yoav está estendido no chão, e o realizador, de pé, sobre o corpo dele, filma-o com um tablet, enquanto o dirige. O espetador consegue assistir ao que o realizador observa no ecrã do tablet: Yoav a proferir palavras em hebraico enquanto se penetra, nu. Apesar de estar obcecado com a imagem de Yoav que observa e dirige, o realizador está, ao mesmo tempo e sem ter essa consciência, a olhar para uma superfície de vidro que o reflete e, portanto, que se torna no seu próprio espelho. Isto quer dizer que a imagem de Yoav acaba por assumir uma variante do próprio realizador, como um espelho dele, só que com contornos distintos. Com efeito, é precisamente esse truque espelhado que fascina o realizador e o faz desejar o estrangeiro que vê naquele rapaz israelita – ele vê-se a ele próprio sem ser parisiense, a ter outra identidade, com outro sotaque e outra linguagem; e, sobretudo, a ter um corpo dentro dos padrões de beleza sociais.


O argumento segundo o qual o Outro é um espelho que cria um desejo imenso em quem observa, ou mesmo um desamor (ver-se-á agora), é confirmado por um diálogo entre Yoav e o burguês Emille, que o recebe, quando os dois têm uma conversa íntima sobre o passado bélico do protagonista: “EMILE: Se soubesse que talvez nunca viesse a criar nada fundamental ou urgente, matava-me. / YOAV: O pai da minha mãe foi um terrorista que combateu os britânicos para libertar Israel. Com suor e sangue cultivaremos uma raça. Pura, generosa e cruel. Morrer, ou conquistar a montanha! / EMILE: Morrer, ou conquistar a montanha! / YOAV: Dois dos seus camaradas foram condenados pelos britânicos a... Enforcamento? / EMILE: Sim, enforcamento. / YOAV: Na noite da execução, eles puseram uma granada entre o peito um do outro e apertaram com força, depois com mais força, e cada vez com mais força, cada vez com mais força... / EMILE: Para morrerem coração com coração. / YOAV: Fazias isso com a Caroline? / EMILE: Fazia isso contigo.” (Sinónimos, realiz. Nadav Lapid, SBS Productions, 2018).


A sombra bélica de Yoav é composta então por um desamor fundado num espelho de contornos distintos da “raça pura, generosa e cruel”. Ironicamente, é esse mesmo espelho que se coloca frente a Emille, em Paris, e o faz desejar eroticamente aquele estrangeiro que recebe.  Entre matar e fornicar, as duas são atitudes que parecem dedicar pouca dignidade a Yoav. No entanto, são estes dois veículos – o desejo e o desamor – que fazem com que este último se confronte uma e outra vez com o reflexo de que está em fuga – ele faz tudo para pertencer e desempoeirar o lodo tóxico de uma masculinidade que o acabou por ferir e usar. Mesmo a ação final dos dois camaradas que se colocam com uma granada corpo a corpo para morrerem coração com coração vem sugerir e reforçar, para além de um ato patriótico lido à primeira estância, essa prática tóxica da masculinidade de lidar com o terror, mesmo nas oportunidades de amor incandescente – matarem-se um ao outro por tanto se amarem.


O próprio título do filme, “Sinónimos”, traz uma fuga para o espelho de cada um de nós, que assiste ao facto de sermos sinónimos uns dos outros. Um título humanista, com é evidente, mas que traz a complexidade das variantes que cada grupo de pessoas pode adotar ou ir experienciando. Lapid parede querer demonstrar que uma existência feliz, estável, depende sempre de uma linguagem que lhe é adequada, e é essa gramática existencial que Yoav procura insistentemente.


Sobre uma narrativa pessoal completamente distinta, mas que implica igualmente a gestão de uma linguagem cada vez mais coincidente com uma existência feliz e estável, P. Feijó assinala um desdém e um desamor que a emancipação da sua gramática tende a exortar no recetor comum. Mais, Feijó relata e demonstra o preconceito enraizado que está por detrás de um certo tipo de riso. O ato de rir, que em voga se assume como um ato inocente, pode tomar contornos que acabam ou por ferir uma pessoa em particular ou um determinado grupo de pessoas, o que o torna perigoso e excludente. É esse limiar entre o humor e a troça que Feijó parece investigar, a partir da sua experiência pessoal: “Como é que eu posso explicar tudo isto: que um riso pode pôr em causa a minha existência? Que algo tão simples pode ter uma violência tão absoluta? É preciso explicar que acontece todos os dias? Que, quando saio cedo de casa e apanho com a primeira boca, já estou a apanhar com a nona? Que não é que este riso seja violento, que participe da qualidade de “ser violento”, é antes a própria violência, como coisa preexistente, que tem um riso?” (FEIJÓ, P., 2024, Episódios de Fantasia & Violência, Lisboa: Orfeu Negro, p.18).


Na mesma medida de um percurso que exclui pela positividade – porque a pessoa é vista como “exótica” e, portanto, ou se a deseja ou se é condescendente com ela –, está o gesto violento que ri porque insulta, agride e oprime, podendo mesmo chegar a outros delirantes extremos. Perante estes dois modos de agir, desconfia-se com facilidade que se inaugurem na mesma causa, ainda que produzam efeitos contraditórios. Surpreendentemente ou não, regressamos ao truque do espelho e ao exercício do reconhecimento. Isto é, desvela-se o dilema do agressor: “Vêem-se. Desço a rua e revêem-se em mim muito mais do que gostariam, mais do que, admitindo-o, conseguiriam suportar – a abjeção é da esfera do insofrível. São, de repente, eles de saia. Eles de brinco e unha pintada. Eles femininos. Eles bichas. Eles frágeis. Eles elas. Eles eles. / Afinal não foi só a violência deles a provocar em mim fantasia. Foi a fantasia que me transborda a deixá-los sem rumo, perdidos e encontrados numa violência já lá à espera deles, como de mim.” (idem, p.58).


O agressor reconhece-se num outro corpo que passa a ser uma variante sua. Se ele não encontra correspondência com as personagens-tipo que cimentam o preconceito enraizado que ele entende como comum e “único”, então passa a desprezar (e quer mostrar ativamente esse desprezo) ou a desejar de forma perversa. Nos dois casos, assiste-se a manobras de demonstração de poder, que se traduz no pensamento segundo o qual há existências mais legítimas do que outras e, por consequência, pessoas que têm direto a ter poder sobre as outras.


Na verdade, esta forma de se pensar e de agir já teve outros contornos em tempos idos, nomeadamente nas monarquias, onde se confundia uma pessoa que tinha determinadas caraterísticas com mercadoria – só que, agora, o formato desse tipo de relações sofisticou-se.


É provável que a forma mais eficaz de dedilharmos o nosso próprio enigma espelhado seja tão só dedicarmo-nos a refletir sobre um quotidiano que não comprometa as variações do Outro. Mais, que se desconfie que tudo o que assumimos como realidade seja insuficiente para o seu próprio espelho.


É do feitio da natureza que nos envolve exprimir-se por diversas cores, em constante mutação. O mistério será tentarmos encontrar-lhe um espelho fiel, mesmo sabendo que nunca o acharemos. Um espelho em frente do mundo, como diria a célebre Hamlet, de William Shakespeare.


Foto: © Alípio Padilha

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