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Se é para falarmos agora de margens, então as margens só podem ser isto. Mas também “isto”, antiga Curraleira – hoje Quinta do Lavrado –, fica a apenas meia-hora de minha casa, bem dentro da cidade, bem central: basta apanhar o metro até à Alameda, subir pela Fonte Luminosa, andar um bocadinho à beira da estrada.
Sede de uma Lisboa que qualquer turista desconhece, a da criminalidade e da droga, da violência e da desigualdade social, das barracas que já foram demolidas. Mas os problemas ali, de certa forma, permanecem. Embora com a cara lavada, e depois pintada de fresco. Os prédios típicos do moderno bairro social português, que eu também reconheço dos tempos em que tinha ateliê na Arrentela, no município do Seixal, na Margem Sul – ou “South Bay”, nome preferido dos agentes imobiliários ou de portugueses utópicos –, assombram-me. Cromaticamente enjoativos, severos, desafiam-me a passar por um arco com umas escadinhas a subir.
Mas para quê? Fico aqui deste lado, a seguir o GPS até encontrar o ateliê dos artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. O João está cá fora à minha espera, fumando um cigarro, e a minha presença logo desperta o interesse de Pisão e Mitra, a dupla de cães desta dupla de artistas. Ladram de excitação (os cães). Recolhidos dum canil, eles têm a energia e presença temerárias dos cães vadios de grande porte, mas afinal são dois maria-vai-comas- outras. Dois maricas que não fazem mal. A dada altura, o João explica-me o sentido dos nomes com que foram batizados: Pisão e Mitra são respetivamente os nomes da colónia agrícola e do albergue para onde eram enviados os homossexuais durante o Estado Novo.
Nada na vida e no trabalho de JPV+NAF é por acaso. Nem as coordenadas de GPS da “Curra”, o seu ateliê e por vezes lugar de tertúlias exuberantes. Nem os nomes das coisas. Tudo fica envolto em camadas de posicionamentos e de leituras. Tudo e todos nós.
Obviamente, o título deste projeto, Pink Flamingos, remete para o filme de John Waters de 1972, onde Divine encarnou o papel de Babs Johnson, orgulhosa de ser “the filthiest person alive”, e em que come merda para provar isso (a pior pessoa do mundo, na sua tradução menos ofensiva para português, mas a merda é a mesma).
Nas fotos, que são o Art Project selecionado para este número da Umbigo com o tema Centros/Margens, JPV+NAF e os seus corpos na meia-idade, brincam nus, despudoradamente, numa praia portuguesa. Fazem bichices com bóias em forma de flamingos a tapar as partes íntimas, ou seja, são delicadamente envoltas em PVC e em camadas de posicionamentos e leituras. A citação do filme é literal, dizem, mas isso vai desencadear uma série de leituras. Literalmente: Waters, no seu cinema, não era indiferente à relevância da pobreza ou da precariedade nas suas fantasias povoadas por gente feia e corpos desajeitados, personificadas na figura de Divine, que morreu em 1988 de um coração dilatado.
É o coração que lateja sempre no centro das camadas.
Eu imaginava que se autodenominavam de periféricos, de marginais, por ainda serem de certa forma artistes maudits, por trabalharem os temas que trabalham, por defenderem os interesses que defendem, mas afinal consideram que são do centro:
“Porque o nosso trabalho pode ser sobre imensas coisas, mas é sempre sobre nós, a nossa relação com as coisas.” Ora, antes de mais, é preciso dizer que é um prazer falar com eles. São bons e divertidos anfitriões, escutam, deixam espaço para todos se articularem, mas porque são uma dupla, não é incomum uma ideia ser dissecada meticulosamente entre eles.
“Ou seja, as coisas estão à nossa frente, estão a acontecer à nossa volta.”
“Quando nós falamos desta coisa do centro e da margem e da periferia, nós, em teoria, somos sempre pela margem. Eu entendo que possa ser feito essa leitura.”
“Mas não vemos a coisa dessa forma dicotómica.”
“O centro somos sempre nós.”
“O nosso trabalho só pode ser centro. É sobre como é que todo este envolvente nos constrói enquanto pessoas que pensam…”
Pensei para comigo, se isto está a acontecer perante eles, então está a acontecer à minha frente também. Podemos pensar que estamos sempre na margem dos acontecimentos, mas é a nós, pobres coitados, que as coisas realmente acontecem.
Durante alguns anos, JPV+NAV faziam campismo na Galé, onde as fotos deste projeto foram tiradas. “Elas não foram feitas com a intenção de serem arte, mas elas acabam por ser o resultado de todas estas coisas que estamos a falar.” Sempre foi uma praia de difícil acesso, mas através do parque de campismo que ali aos poucos se foi instalando, numa zona arborizada perto de Melides, podia-se chegar até ela. Se calhar, hoje em dia nós tomamos este fenómeno por garantido, mas segundo eles (depois de alguma deliberação), a questão do campismo é uma conquista relativamente recente, pós-25 de Abril: o acesso às férias e o acesso a este tempo livre dos trabalhadores é um direito recém-adquirido na sociedade portuguesa.
Eventualmente, uns 500 utentes do parque, na maioria reformados, acabaram por depositar muitas expectativas, e dinheiro, ao construir ali a sua casa, para não falar dos milhares de veraneantes que usufruíam do parque para as suas férias. Só que o parque foi vendido em finais de 2021, num negócio multimilionário, à empresa americana Discovery Land Company...
que se especializa na instalação de resorts de luxo. Primeiro, fecharam o acesso às pessoas que iam lá acampar, inclusive a JPV+NAF, e estas fotos – inocentes e ignorantes, dir-se-ia – registam a última vez que tiveram acesso àquela praia. O futuro para as pessoas que lá têm casa ainda parece incerto.
“As pessoas estão a vender tudo, oferecem milhões por nada. Portanto, és obrigado a vender.” “Eu também vendia”.
Eu classificaria o trabalho de JPV+NAF de humanista, antes de tudo, apesar da sua leitura muitas vezes – mas nem sempre – assumidamente queer, ou de subversão altamente irónica ou carnavalesca (como Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre, de 2017, ou também Trouble in Paradise, de 2015, entre outros). Eles próprios podem não concordar comigo, mas pronto.
Quanto aos outros, as pessoas, se calhar elas devem pensar que esta arte humanista não é dirigida a elas. Se calhar pensam que é uma afronta, o facto de isto ser capa de uma revista como a Umbigo.
“Nós sabemos como, mas ao trazer determinadas temáticas para o centro das atenções, que é o nosso trabalho, elas podem ser problematizadas e podem ser pensadas.”
“Mas também sentimos que, se temos palco para fazer um projeto com maior visibilidade, também sentimos responsabilidade por aquilo que estamos a fazer. Sabemos que nós conseguimos implodir, através do lugar onde estamos.”
Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Umbigo Magazine. A UMBIGO é uma plataforma independente dedicada à arte e cultura, que inclui uma revista trimestral impressa, uma publicação online diária, uma rede social virada para arte e um programa de várias atividades de curadoria.
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