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Miguel F e Magda não têm terra nos sapatos

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COFFEEPASTE
29 de Abril de 2024

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Miguel F e Magda não têm terra nos sapatos

"Imersos e instigados pelas incertezas da revolução digital que vivemos, aventuramo-nos a pensar os impactos coletivos e relacionais da manipulação mediática, da Inteligência Artificial (IA) ou das Redes Sociais que habitam e se fazem habitar no nosso quotidiano". Este é o início da sinopse da performance NÃO TENHO TERRA NOS SAPATOS (TENHO UM CHÃO CHEIO DE PIXELS MORTOS QUE NÃO CONSIGO VARRER PARA DEBAIXO DAS MINHAS PERNAS DE SOFÁ), da autoria de Miguel F e Magda, com estreia marcada para 25 de maio de 2024 no Theatro Gil Vicente. Conversámos com os criadores para saber mais.


Falem um pouco do vosso percurso artístico

Miguel F - Trabalho como artista visual, sobretudo através do vídeo, da fotografia e instalações multimédia. Aventuro-me pontualmente também na música, no desenho e outras experiências de cruzamento. Nos últimos anos tenho vindo a trabalhar com companhias e artistas ligados ao Teatro e à Dança, quer na criação de vídeo para cena como na documentação de processos de trabalho e espetáculos. Nos meus projetos pessoais, tendo a tentar relacionar um lado mais pessoal a uma dimensão política, que me parece imprescindível para o diálogo que está subentendido em apresentar trabalho publicamente. Este projecto vem mais daí, de uma inquietação pessoal, mais do que interesse particular por tecnologia como meio ou eixo de pesquisa.  Faço atualmente parte do Coletivo InterStruct que é um projeto que tem trabalhado questões ligadas ao pensamento decolonial e direitos humanos e me tem ensinado bastante sobre processos criativos horizontais.


Magda - Desde muito cedo que me envolvi com a dança, estudei no Ginasiano em Gaia e na ArtEZ na Holanda. Nos últimos anos tenho tentado que esta relação de vida com esta arte não acabe em divórcio, e por isso desde 2019 estou mais focada em trabalhar nas minhas criações. Até agora, os projetos têm sido sempre em colaboração com outres artistes. Com o passar dos anos, a vontade de estar rodeada de pessoas com pensamentos/ideias, que nem sempre são iguais aos meus, mas que nos tiram da zona de conforto e obrigam a repensar, é cada vez mais necessário. Para além do meu trabalho como intérprete e criadora emergente, também dou aulas de dança, ganha-pão que me tem ensinado tanto a mim, como eu aos meus alunos. 


Como surge a performance NÃO TENHO TERRA NOS SAPATOS (TENHO UM CHÃO CHEIO DE PIXELS MORTOS QUE NÃO CONSIGO VARRER PARA DEBAIXO DAS MINHAS PERNAS DE SOFÁ)? 

Surge de uma inquietação comum. De coisas quotidianas, e tão densas e horrorosas, como estarmos a assistir a um genocídio em direto nos nossos telemóveis, de nos apercebermos que a publicidade direcionada não só condiciona o nosso dia a dia como pode alterar o nosso comportamento. Desta desinformação sistemática e sistémica que em último recurso leva à manipulação de eleições ou ao impulsionar de movimentos de ódio ligados à nova extrema-direita. De eventualmente nos apercebermos que o mediatismo e o acesso a mais informação não é sinónimo de mais conhecimento ou bem-estar.  Este boom tecnológico a que estamos a assistir é relativamente recente, e por esse motivo há ainda uma enorme névoa quer na utilização destas novas tecnologias, quer no vislumbre de um futuro concreto. A própria definição de tecnologia está intrinsecamente ligada à ideia de progresso. Mas nos dias de hoje, progresso para quem? Parece-nos que pelo contrário este processo se está a desenvolver assente num modelo de exploração, vigilância e privação de liberdades. Por exemplo, sabemos que uma parte importante das matérias-primas necessárias para construir os computadores ou telemóveis que utilizamos são provenientes de trabalho forçado de crianças no Congo. Sabemos que fotografias pessoais que partilhamos nas redes sociais podem ser vendidas sem o nosso consentimento a empresas que desenvolvem tecnologia militar; um bom exemplo disso são os sistemas de reconhecimento facial utilizados para controlar e oprimir pessoas na Palestina ou na China.


Se a tecnologia é por definição um caminho para o progresso, parece-nos que estamos a viver tempos muito opacos, onde tantas vezes de forma mais ou menos consciente alimentamos estas máquinas de opressão. 


Querem falar-nos um pouco do título? 

O título saiu diretamente dos nossos cadernos caóticos de notas soltas :) Não foi assim uma coisa muito premeditada, acho que ganhou a nossa simpatia pela estranheza, e por remeter a uma dualidade inevitavelmente presente na utilização de novas tecnologias, particularmente digitais, entre o toque, o tato tão animais e por isso humanos e a imaterialidade da linguagem e comunicação digital. Entre aquilo que de certa forma entendíamos como uma condição humana mais ou menos universal e estas novas formas de relacionamento entre humanos mediados por tecnologia ou mesmo da relação entre humanos e o digital. 


Como foi o processo de pesquisa para esta performance?

Bastante desafiante quer pela amplitude deste assunto como pela quantidade de caminhos abertos pela colaboração que temos com o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto que nos recomendou uma série de leituras e referências, de entre as quais podemos destacar o pensamento da investigadora e filósofa Shoshana Zuboff, particularmente o livro “A Era do Capitalismo e Vigilância” que é uma análise extensiva sobre esta nova mutação do sistema capitalista que transformou o nosso quotidiano e a nossa vida pessoal em matéria-prima gratuita. Acabamos por trabalhar alguns conceitos que nos pareceram fundamentais em diferentes momentos da performance, por exemplo, a multiplicidade de espaços, tempos e identidades proporcionadas pelos novos meios digitais, a resistência e resiliência humana na luta pela liberdade, a ideia de consentimento e servidão voluntária neste contexto, a distopia de um corpo humano tomado pela singularidade tecnológica - uma super inteligência artificial. 


O que destacam do processo criativo? 

Tem sido interessante e difícil. Disponibilizamo-nos desde cedo a trabalhar bastante fora da nossa área de conforto, quer na área de pesquisa mais teórica, quer em parte dos meios ou técnicas que estamos a utilizar. 


Dar continuidade a formas e conteúdos que temos vindo a trabalhar, pode ser um caminho menos doloroso e mais fácil para um processo prazeroso, no entanto, parece-nos importante andar atrás da descoberta por caminhos mais difusos e assumir os riscos que isso implica. Temos tido a colaboração preciosa da Belisa Branças, Duarte Valadares e Jo Castro que se têm envolvido com uma energia bastante afinada com as curvas e contracurvas do caminho que estamos a construir. É muito valioso este intercâmbio de ideias que tem ocupado um lugar fundamental no processo criativo e acreditamos que é nesse lugar que o processo se torna mais aprazível. 


O que vamos ver em cena difere muito da ideia inicial com que partiram?

Do ponto de vista formal e de conceito será muito próximo da ideia inicial: cruzamento de dança, vídeo-arte, luz e música eletrónica como recurso a algoritmos generativos e inteligência artificial para pensar de perspectivas políticas, afetivas e relacionais sobre este período de transformações tecnológicas tão rápidas e radicais. Partimos de pressupostos muito sólidos e bem definidos sem fazer a mínima ideia a onde íamos chegar. E como liberdade para criar é um pressuposto que nos agrada muito.


Onde poderá estar o equilíbrio entre opressão e avanço tecnológico?

Na verdade, não nos parece existir uma relação, digamos, natural entre nenhum tipo de opressão e desenvolvimento tecnológico. O problema estará certamente mais no facto dessas ferramentas serem postas ao serviço do poder e proveito exclusivo de uma elite financeira e política. E isto é válido para mega plataformas de comércio digital, para as redes sociais, investimento militar de governos ou desenvolvimento de novos produtos farmacêuticos. O problema está, outra vez, no velho modelo predatório neo-liberal, desta vez sob a forma de ultra-vigilância e no caso de monopólios como a Amazon, numa espécie de novo feudalismo. Achamos que o único equilíbrio possível passará certamente pelo controlo e regulação democrática das grandes empresas de desenvolvimento tecnológico. Certamente também pela literacia digital implementada nas escolas e nos meios de comunicação de massas.  


A vossa perspetiva relativamente ao futuro é positiva, ou nem por isso?

Bastante distópica. Mas com a certeza que isso pode ser o motor imprescindível para uma mudança onde o bem-estar humano e a justiça social possam ser uma prioridade absoluta. 

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