Fala-nos um pouco do teu percurso na dança.A “dança” aconteceu-me acidentalmente. Em pequeno (10 anos?) participei num sarau escolar de final de ano lectivo em Lourenço Marques (Moçambique, onde nasci), e onde dancei uma dança tradicional local. Foi a primeira vez que me apresentei em público num “espectáculo”. Mais tarde e já em Portugal eu e uma prima costumávamos fazer sessões de marrabenta (dança tradicional moçambicana muito popular entre os ex colonos) para os familiares que vinham expressamente para nos ver. Incentivado por todos pelo jeito e pela graça decidi investir e praticar “dança”. Em portugal era a época do “Fame”, uma serie televisiva bastante popular que retratava uma escola de dança nos Estados Unidos. Atraído pela atmosfera idílica e desafiante que a serie transmitia comecei a frequentar aulas de dança/jazz que me levaram mais tarde ao Conservatório de Dança, o curso especial de rapazes que frequentei, experimentando, para além do –tortuoso- ballet, as técnicas – bastante agressivas - da modern dance.
Um dia durante uma aula de Graham (técnica desenvolvida pela coreógrafa americana Marta Graham) tive um acidente no joelho esquerdo, seguido de uma pausa longa e uma operação ao menisco. O sonho de um dia me tornar num desses bailarinos extraordinários, mágicos, virtuosos e possantes que inocentemente idealizava, acabara de se esboroar definitivamente.
Foi mais tarde durante a frequência da Escola Superior de Dança, ao mesmo tempo que a Europa borbulhava criativamente com o movimento da nova dança europeia, que me redescobri, ao perceber a pluralidade de possibilidades que a “dança” como disciplina afinal possuía e que o meu corpo, apesar dos limites físicos, poderia explorar.
A explosão do Festival Acarte, um acontecimento invulgar no panorama artístico da altura (final dos anos 80, início dos 90) e uma escola fundamental para o meu percurso, assim como o movimento da chamada nova dança portuguesa, contribuiram fortemente para o meu interesse crescendo pela experimentação e a criação.
Mais tarde, e depois de um período em Bruxelas onde vivi, comecei a trabalhar com alguns coreógrafos ao mesmo tempo que ia desenvolvendo as minhas próprias experiências como criador/intérprete.
De todos os coreógrafos da altura destaco o Francisco Camacho que se tornou um marco importante no meu percurso, pela oportunidade que me deu de explorar novas possibilidades de representação, descobrindo deste modo características como a teatralidade e o humor no meu trabalho.
De seguida encontrei e trabalhei com o Jérôme Bel, um encontro marcante para o desenvolvimento da minha prática futura. O conceptualismo, a influência das Artes Plásticas como matriz e método criativo foram referências que ficaram inscritas no meu processo artístico.
O choque entre a experiência física com o Francisco Camacho e o intelectualismo de Jérôme Bel provocaram um curto-circuito que se traduziu na peça “Antonio Miguel” um trabalho que desenvolvi com Antonio Tagliarini, numa tentativa de criar um solo feito por dois. Era a urgência de criar uma assinatura, encontrar-me como autor.
A partir daí comecei a aprofundar uma linha de trabalho em busca de uma identidade, ancorada numa pesquisa autobiográfica e na relação intima, pessoal com o mundo/espectáculo.
O “outro” como reflexo e espelho tornou-se uma espécie de obsessão que me levou e tem levado a reflectir sobre a nossa condição, humana, animal, social, política e cultural.
És artista associado do “O Rumo do Fumo”. Em que aspecto é que estar dentro de uma estrutura modifica a tua forma de trabalhar?A visibilidade e a projecção que o movimento da nova dança ganhou fez com que os artistas se começassem a organizar, a desenvolver os seus próprios meios de produção que lhes permitissem alguma estabilidade e independência. Começaram a aparecer algumas estruturas. A Vera Mantero criou o Rumo do Fumo.
A minha ligação com O Rumo do Fumo tem já mais de 10 anos e partiu de um convite que a Vera me fez em 1999 para a integrar.
Foi sem dúvida um passo importante para a consolidação e visibilidade do meu trabalho.
Há uma serie de fundamentos, valores e critérios que definem o Rumo do Fumo. Há um sentido crítico muito apurado. E há a partilha de uma série de parâmetros artísticos que ajudaram também a definir o meu trajecto e a minha linha de trabalho.
Essencialmente tenho sentido um espaço de liberdade para poder desenvolver artísticamente o meu trabalho assim como um apoio imprescindível à produção e difusão.
O teu percurso engloba uma série de colaborações. Em que medida isso altera o processo criativo, e como o comparas com o trabalho mais “solitário”?O trabalho criativo para mim sempre teve qualquer coisa de solitário, qual um escritor que isoladamente imagina e escreve o seu mundo. Desde cedo me dediquei a trabalhar sobre mim próprio. Só me conhecendo poderia entender o “outro”.No entanto a disciplina da “dança” é uma disciplina do colectivo, nunca estamos sozinhos. Os intérpretes, os criativos, os dramaturgos e os produtores são sempre participações e colaborações importantes no processo, que afectam sempre aquilo que produzimos.
Apesar de trabalhar muito a partir de mim próprio sou de facto afectado pelas pessoas com quem crio. Nem sempre é pacífico mas é nessas tensões que ele se enriquece.
É no atrito que muitas vezes nasce a explosão criativa, a essência de um gesto, a urgência de afirmar qualquer coisa.
Quando colaboramos também temos que saber ceder, deixar o espaço ao outro, deixar cair as nossas certezas e convicções. Mas não é fácil. Há uma tendência para a mitificação do ego, parecendo que o acto criativo apenas nasce daí.
Cada vez mais me pergunto se a criação artística contemporânea ocidental não está toda ela suportada sobre essas premissas, condicionando-a.
Ao longo do meu percurso tive alguns encontros e colaborações fundamentais. O Antonio Tagliarini, por exemplo, foi uma pessoa muito importante por me ter permitido concretizar de uma forma bastante eficaz a experiência do encontro a dois.
A Karima Mansour, a coreógrafa egipcia com quem tentei fazer um trabalho de colaboração foi também um momento importante e de viragem na forma como encaro as questões artísticas e os princípios em que todo o meu trabalho até aí tinha sido construído. Pela primeira vez fui confrontado não só com uma cultura para mim distante mas também pela natureza das relações pessoais que marca muito o que produzimos.
Como encaras o acto de falhar, e como o integras no teu trabalho?Falhar é parte integrante da nossa conduta e da nossa condição, por isso assumi-lo no trabalho artístico é vital para mim. Penso mesmo que é isso que o constitui. Eu busco no meio da perfeição a falha, a impossibilidade, os limites, para assim me poder reinventar, me descobrir e formular novos caminhos e novas possibilidades.
Há uma assumpção, essencialmente de ordem cultural, de que dominamos e controlamos o mundo e a natureza, mas sabemos quão vã é essa tarefa. E é a partir dessa tensão que construímos e desconstruímos realidades que afinal não passam disso mesmo, um pretexto para nos mantermos vivos e ao mesmo tempo defrontarmos o desconhecido e a imponderabilidade da vida.
Para mim, o espaço da Arte, ou da “dança” se quisermos, serve para isso, para explorarmos, questionarmos e reflectirmos sobre a fragilidade e a efemeridade que existem por detrás das certezas.