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No universo do teatro contemporâneo, há espetáculos que desafiam os limites da interpretação, do corpo e da perceção. NIRVANA, criação de Tiago Mateus, insere-se precisamente nesse território de risco e transcendência. Apresentado como um "esforço utópico que esculpe a Liberdade", o espetáculo explora a resistência física e emocional da intérprete, levando-a a um estado de vulnerabilidade extrema, onde a continuidade se torna um ato de afirmação.
Nesta entrevista, o dramaturgo e encenador partilha as motivações e processos por trás da obra, revelando como a intensidade das suas vivências pessoais moldou a escrita e a encenação. Entre imagens poéticas, fragmentação narrativa e uma fisicalidade extenuante, NIRVANA convida o público a uma participação ativa, ainda que silenciosa, num espaço de contemplação e desconforto. Através de contrastes entre violência e ternura, esforço e impossibilidade, a peça propõe uma reflexão sobre a liberdade, a escolha e a própria condição humana.
Nesta conversa, Tiago Mateus fala sobre os desafios da criação, o papel da intérprete Bárbara Gomes, e a forma como o espetáculo se relaciona com o espaço Casa Cheia. E, no final, responde a uma das questões mais essenciais: pode a Arte salvar?
Nirvana é descrito como um "esforço utópico que esculpe a Liberdade". Como surgiu essa ideia e de que forma ela se manifesta no espetáculo?
Essa descrição surge a propósito de uma ideia de missão, de trabalho. O esforço torna-se utópico porque se desafia a si próprio, obsessivamente, a ir mais longe quando já não será razoável fazê-lo. O corpo tem limites e também o Sol se põe quando é a hora dele. A forma que esta ideia tem em manifestar-se no espetáculo, passa pela intérprete colocar-se numa situação de desconforto, risco e imprevisibilidade e ainda assim: continuar. A Liberdade e as liberdades não se conquistam sem esforço; e à medida que ultrapassamos metas: outras logo surgem. O esforço é utópico porque o corpo não aguenta.
O espetáculo parece questionar a própria existência e a noção de escolha. Qual o papel do público nessa experiência? Espera-se que ele participe ativamente ou seja mais um observador?
Uma participação contemplativa pode ser ativa. Será algo que se passa por dentro. Nada e tudo se espera do público. Assim como nada e tudo se espera da intérprete. A responsabilidade da escolha ou é assumida, ou não é.
O texto tem uma cadência poética e fragmentada, cheia de imagens intensas e por vezes contraditórias. Como foi o processo de escrita e de encenação para traduzir essa complexidade para o palco?
No processo de escrita, eu estava em "carne viva" - muito zangado, muito revoltado, em luta para conseguir estar bem face a um ano que tive muito violento e a muitos níveis. Existe aí, uma exigência por um bem-estar, por uma disponibilidade que me cobro perante o ânimo que posso oferecer aos outros. O texto vem de um sítio de grande sofrimento e intolerância perante as agressões e uma apatia que se apelida de "normal", diria. A forma como isto se traduz para palco é o de exaltar uma certa monstruosidade; de passar por momentos de ternura para uma loucura ou espontaneidade que ultrapassam a noção de que este espetáculo é um evento. Pode e não pode ser; as récitas o dirão. A complexidade a que te referes, é a da própria vida, em si. E nesse sentido, o meu objetivo é que essa tradução seja a mais crua possível.
Há momentos no texto que evocam violência, resistência e transcendência. Como trabalhaste esses contrastes na construção da dramaturgia?
De forma natural, face a uma amplitude muito grande que vou carregando. Trabalhei de ponta a ponta, nessa amplitude, contra mim e a meu favor. A evocação da violência aparece pela intolerância que já mencionei. Não estarei já nesse sítio, felizmente. Para a cena: as palavras são ditas, porém há quase uma súplica de perdão por estarem a ser proferidas. É sempre uma libertação que procuro, essa transcendência que opera como uma maldição e como uma benção. É uma responsabilidade. E é uma responsabilidade que exige uma atenção profunda perante o corpo e o lugar. Junto com a Bárbara, tentei passar-lhe algumas destas noções, fundamentando o texto para que ela compreendesse o porquê e de onde vem tudo isto. A ambiguidade, que advém desta amplitude, traz algo que não se consegue controlar. Os contrastes traduzem-se em ímpetos selvagens e imprevisíveis, tal como os animais ou crianças muito pequenas - é isso que nos faz rir e ter medo, quase ao mesmo tempo -, fora das convenções: é vida, é espanto e é surpresa.
O espetáculo menciona "um risco de morte arriscando ficarmos eternamente vivos". De que forma a peça explora a ideia de imortalidade ou da ausência de morte?
Explora, segundo um conceito muito simples: estamos sempre a morrer e a nascer a cada momento. A prática da intérprete deverá ser essa: pôr a hipótese de não conseguir fazer aquilo a que se propõe. Explora, através da presença do corpo da Bárbara e a forma como ela manipula a nossa percepção naquele espaço.
Qual a importância da chuva, que aparece recorrentemente no texto? Ela simboliza algo específico dentro da narrativa?
A chuva importa somente na medida da simplicidade, de gotas de água que caem do céu, o seu lado poético e até: mágico. Aqui, ela surge como uma relativização dos problemas ou preocupações que nos poderão assolar. Algo simples que, na sua contemplação melancólica ou nostálgica, nos faz esquecer tudo e nos salva de nós mesmos.
Algumas passagens do texto parecem evocar um fluxo de consciência ou até estados alterados de percepção. Como é que esta abordagem influencia a interpretação dos atores?
É uma pergunta difícil de responder. Pode ou não pode influenciar - é uma incógnita. Esperançosamente influenciará na medida em que o que proponho é um estado muito fino, muito exigente de se habitar e muito cansativo; a Bárbara corresponde. É um estado de percepção onde existe uma camada de super consciência e, ao mesmo tempo, de anulação da vontade; como se algo exterior a nós operasse e controlasse o nosso corpo. Esse estado pode fazer com que tenhamos acesso a percepções extraordinárias, sensações que extrapolam, por exemplo, as convenções de tempo e de espaço.
Como é que o Espaço Casa Cheia dialoga com a peça?
Através de um lugar que se quer íntimo na conceção cénica e pelo aspecto institucional: o facto da Casa Cheia ser um lugar que promove a apresentação de espetáculos que resultam da pesquisa dos seus criadores; o que é de salutar.
Se tivesses de descrever Nirvana em uma só imagem ou sensação, qual seria?
Tudo branco, olhar de olhos fechados e o corpo a desintegrar-se.
A Arte pode salvar?
A Arte salva, mais que não seja pelo exercício de colocar o Mundo entre parêntesis.
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