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À entrada da sala, Mafalda Banquart apresenta-se acompanhada. Quem tem ao lado não lhe é indiferente. Ela conta-nos que traz consigo quatro pessoas amigas para a assistir numa partilha íntima, onde assumirá fragilidades pessoais relacionadas com saúde mental e comportamental, conflitos internos e externos. Os intérpretes apresentam-se, a si mesmos e aos animais estampados na roupa, dizendo-nos que são os animais de estimação que a Mafalda teve pela vida fora. Qualquer ser humano que tenha tido uma relação próxima com um animal de estimação entende a conexão emocional que ali se estabelece.
Nesta cerimónia introdutória já se pode constatar o cariz autobiográfico que dominará o espetáculo Flowers. Começam a brotar perguntas sobre as nuances da autoanálise. Examinarmo-nos cria um afastamento da nossa personalidade ou o nosso ponto de vista não a permite? Até onde conseguimos abstrair-nos de nós? Mergulhar em si mesmo é um alienamento?
Atravessando um nevoeiro denso, somos guiados para dentro do espaço cénico, onde seremos livres de deambular. Chamam-nos à atenção para os elementos acima das nossas cabeças e dispostos no linóleo, e damo-nos conta de estar numa selva instalativa que o nosso olhar vai destapando. Os intérpretes que nos guiam em grupos descrevem em pormenor o que os nossos olhos já interpretam, promovendo uma experiência sensorial que inclui também o tato e o paladar.
A determinada altura, os intérpretes passam a relacionar-se através de um novo objeto: o diário da Mafalda. Na realidade são vários, distribuídos por aquele círculo de amigos. É de lá que advém a matéria textual do espetáculo. Os diários girly são compostos por recortes, colagens e desenhos, para além do texto. Quando os vi com maior proximidade, pude discernir nas capas uma imagem da revista Bravo, autocolantes com corações, princesas da Disney, muito brilho e purpurina, numa linhagem teen. Desconfia-se que os diários não sejam apenas seus, dada a quantidade de material que parece razoável escrever durante a adolescência. Há muitas entradas em inglês, talvez uma língua em que Mafalda tenha uma relação íntima ou na qual goste de se expressar.
Vários episódios parecem mais passíveis de terem ocorrido com uma jovem adulta, do que com uma adolescente. Oferecem um vislumbre de uma experiência num mundo que se presume ser o da sua geração, e por consequência o da minha, quer eu me relacione mais ou menos com aquelas vivências, desde experiências com drogas, corações partidos, resultados de rastreios a DST’s, vida noturna, dismorfia corporal, pensamentos suicidas, ansiedade, pânico, impotência.
Pese embora a importância destas entradas de diário para o desenvolvimento do espetáculo - dado que se centra na imersão de uma personalidade - a palavra não ocupa um valor primordial, já que várias vezes se torna ininteligível. Uma cacofonia de sons acumulados pelos amigos, a lerem ao microfone, cumpre a função de resguardar a privacidade do que se partilha. Funciona quase como os pequenos cadeados que muitas vezes se vêm nos diários.
A responsabilidade de ir atrás do espetáculo fica então atribuída ao espectador. Se o espectador assumir a preocupação de acompanhar tudo o que for dito pode passar por uma certa claustrofobia ou por um afastamento com o objeto. O que põe em causa a importância de acompanhar o que é dito, já que a proposta cénica joga no sentido oposto. Porém, devo admitir que passei melhor os momentos em que acompanhava a partilha textual do que aqueles em que me desliguei e vagueei pelo espaço.
Damo-nos conta que todos aqueles diários não podem ter sido escritos por uma jovem Mafalda. Além de não acreditar na veracidade daquela versão de vida que me é contada, deparo-me com o facto de ter sido vencido por algo exterior a mim, mas que habita também em mim. A minha ignorância e o meu preconceito não me permitiram entender desde cedo algo elementar: a imensa quantidade de versos de músicas da Miley Cyrus que são lidos ao longo do espetáculo. A Mafalda coroa esta mistura híbrida com o lip sync que faz de Pablow the Blowfish. Dou-me conta de que o Pablo que me foi apresentado não é o Pablo que eu conheço. Não é o pequeno peixe beta estampado no hoodie de um dos intérpretes, que acreditei ser um dos animais de estimação que a Mafalda teve em criança. Afinal, é Pablow, o peixe-balão de Miley Cyrus que ao morrer lhe inspirou o tema. Ou talvez a Mafalda tenha tido também um peixe e o tenha batizado com o mesmo nome, não sei. Ela sopra para um copo em forma de peixe-balão, como que a enchê-lo, para o reanimar de volta à vida.
Extravasamos a nossa existência para lá de nós, em pessoas, em objetos, em memórias, em livros e filmes, em obras de arte. Isso acontece por nos revermos de tal forma em coisas exteriores a nós que achamos pertencer-lhes, tanto quanto elas nos pertencem a nós? Será essa uma perspetiva autocentrada que nos faz acreditar que vivemos em tudo onde nos reconhecemos? Ou isso acontece porque a natureza daquilo que encontramos fora de nós é-nos tão próxima que chegamos a entender que é a mesma natureza que nos compõe? Será possível que os objetos, os momentos, as memórias guardem parte da nossa personalidade?
E as pessoas? Comecei a pensar que guardo as pessoas que me são queridas não simplesmente pelas memórias do que fizeram, de como me fizeram sentir, do que fabricaram, de como alteraram o universo à sua volta. Aceito ser possível que eu viva também nos outros. Que uma parte da minha individualidade, da minha personalidade, seja transportada para a esfera universal através dos outros. O meu eu guardado pelos meus amigos. Sentimos a necessidade de delimitar para conhecer, mas pode ser que seja impossível delimitar-nos. Talvez isso seja demais para o que nos permitimos aceitar.
O que fica então, sobre uma adolescência e início de vida adulta construída a várias mãos, sejam as da Mafalda, as de todos aqueles seus amigos, as de Miley Cyrus e quem sabe de quem mais, num emaranhado indistinguível de memórias partilhadas? Quem é a Mafalda? Aquelas entradas de diário. Os versos de Miley Cyrus. Mesmo não tendo sido ela a escrevê-los, não deixam de ser ela.
Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 29 e 30 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de FLOWERS!, de Mafalda Banquart / silentparty, e cão de sete patas, de Bibi Dória.
Foto: Ana Lopes
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