Por Isabel GarcezMuito se elogiou o discurso do presidente da República nas comemorações do passado 25 de Abril. Fiquei surpreendida; eu tinha acompanhado os discursos em direto (ou seja: sem edição jornalística) e não me apercebera do quão «notável», «inteligente», «inspirado» e inspirador», etc., etc., etc., tinha sido o discurso do senhor presidente... É verdade que Portugal está habituado a elogiar o Professor Marcelo e o Professor Marcelo está habituado a ser elogiado por Portugal, mas desta vez os elogios subiram de tom de tal forma que achei que me tinha deixado influenciar pela minha tendencialmente negativa opinião acerca de figuras públicas «inquestionáveis», no geral, e «conciliadoras», no particular.
Sabendo que quem ouve e/ou vê faz muito por qualquer mensagem, resolvi ir ler este «excecional» discurso, mesmo sabendo que quem lê faz muito por qualquer mensagem… E proponho o seguinte exercício: reproduzo aqui os parágrafos que aparentemente justificaram o elogio quase unânime e inter(calo-os) com uma linha em branco para os vossos comentários. Esta é a versão para os que preferem ler em papel com um lápis atrás da orelha; para os fãs do PDF, sugiro o uso das ferramentas «realçar texto» e «adicionar nota a texto»; eu, como estou com um documento word à frente, vou usar os «comentários» da ferramenta «rever». (A ferramenta a usar é indiferente, desde que o instrumento seja o cérebro.) O objetivo deste exercício é identificar palavras e/ou expressões que nos (des)agradem e explicar sucintamente porquê. No fim, farei uma sugestão de análise dos dados recolhidos.
Cá vai:
«[…]
Olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado que as mais das vezes não nos é fácil entender sabendo que outros, ainda, nos olharão no futuro de forma diversa dos nossos olhos de hoje.
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[…]
Acreditando muitos, nos quais também me incluo, que o olhar de hoje não era nas mais das vezes o olhar desses outros tempos.
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O que obriga a uma missão ingrata: a de julgar o passado com os olhos de hoje, sem exigir, nalgumas situações, aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais, sobretudo se não adotados nas sociedades mais avançadas de então.
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[…]
Que os anos que faltam até ao meio século do 25 de Abril sirvam a todos nós para trilharmos um tal caminho como a maioria dos portugueses o tem feito nas décadas volvidas fazendo de cada dia um passo mais no assumir as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos responsabilizamos, e bem assim no construir hoje coesões e inclusões e no combater hoje intolerâncias pessoais ou sociais.
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Quem vos apela a isso mesmo é o filho de um governante na Ditadura e no Império, que viveu na que apelida de sua segunda Pátria o ocaso tardio inexorável desse Império, e viveu depois, como constituinte, o arranque do novo tempo democrática. Charneira como milhões de portugueses, entre duas histórias da mesma História e nem por exercer a função que exerce olvida ou apaga a história que testemunhou. Como nem por ter testemunhando essa história deixou de ser eleito e reeleito pelos portugueses em democracia. Democracia que ajudou a consagrar na Constituição que há 45 anos nos rege.
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Que o 25 de Abril viva sempre, como gesto libertador e refundador da história. Que saibamos fazer dessa nossa história lição de presente e de futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos injustificados querendo muito mais e muito melhor.»[1]
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Uma vez que grande parte dos elogiosos comentários dos nossos média (convencionais ou não) realçaram o tempo verbal do olhar do presidente, sugiro que façamos o mesmo, avaliando o nosso olhar sobre o olhar de Marcelo: será ele o de um «passado» que teima em permanecer, fermentando num pântano mais-que-perfeito? Desejo (presente do indicativo) sinceramente que não. Até porque o olhar do futuro poderá eternizar o que lhe legarmos.
Olvido intencionalmente o modo destes verbos meramente auxiliares: porque o nosso pensamento é sempre «indicativo» das pessoas que somos; porque o «conjuntivo» é uma forma de impunidade escondida atrás das sempre inúmeras conjunturas; e porque o 25 de Abril nos ensinou a ter muito cuidado com tudo o que nos dizem ser «imperativo».
[1] Rebelo de Sousa, Marcelo. Página Oficial da Presidência da República Portuguesa:
https://www.presidencia.pt/ (Acesso: 28-04-2021).
Isabel GarcezEstuda Literatura Portuguesa no CLP-UC. Trabalha em edição desde 1993 (Editorial Caminho: 1996-2016). É membro fundador da Associação Cultural Prado.
Esta iniciativa resulta de uma parceria Coffeepaste / Prado. A Prado é uma estrutura financiada pela DGArtes / Governo de Portugal para o biénio 2020/2021.