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Frente-a-frente começa nas alturas onde adivinhamos o canto polifónico de Inês Campos em cima de um banco. À voz despojada junta-se a independência melódica e o vibrato Cáucaso de Vahan Kerovpyan, para conversarem na fluência de esperanto que atravessa obra – uma das vencedoras das bolsas de criação d’O Espaço do Tempo 2023/2024, com o apoio BPI e Fundação la Caixa, estreada n’O Espaço do Tempo em Montemor-o-Novo, 15 e 16 de novembro, e passagem pela Associação da Pasteleira, no Porto, a 29.
Num sobressalto mecânico, a elevação do encontro é interrompida pelas maracas que aparecem para espantar a melancolia do diário. Entre a busca pela pose certa e o fascínio pela potência oculta do instrumento, dança, acrobacia e totems misturam-se numa comédia (in)voluntária que também fala em geral das criações artísticas.
Sisudo ou risível, afinal “A alegria é a coisa mais séria da vida” (Almada Negreiros), não acertamos completamente no ambiente até que o concerto rebenta a bolha e passa à alegria militante e rescrita apurada dos arquivos. Apropriações conscientes de gestos e expressões do cancioneiro, movidos a novos versos, o dispositivo passa por experimentar e devolver proposições etnográficas e eruditas sem a pressão da alta-fidelidade.
“Ma, Me, Mi, Ni, Mo, Sa…”, aos soluços remata-se: “Ri-te. Toma. Mimi. Mínimo. Máximo. Prático. Se há salário mínimo, porque não máximo?”. O tom resume o aspeto popular de quadras trocadas por jingles e slogans do anti consumo, que vão minando as onomatopeias da infância e as utopias.
As canções, se se quiser, de Frente-a-frente, defraudam a expectativa de se tornarem num simples jogo das diferenças dependente das nossas associações ou de influências diretas – não é de caras que vemos em palco a história na folha de sala de Ramos Indiano, portuense com um arquivo de bandas sonoras de Bollywood, sobre as quais canta e toca trancanholas; figura simbólica da recriação popular de molduras formais.
Investindo antes numa continuidade entre o doméstico e o universal, um aspeto de cultura engajada resgata o individual e o coletivo da homogeneidade e das ficções exportáveis da World Music. Os dois não se ocupam tanto de debitar faixas, como de ensaiar a lógica da transmissão oral – entendida como partitura fragmentada e aberta – numa conversa mais lata sobre as possibilidades de criação artística, influência e apropriação.
Mas o empenho no desequilíbrio e a consciência performativa de sobressaltos que desorganizam as nossas referências, também aponta a uma rejeição educada da erudição. Quando retomam o banco para balbuciar afetados “Nijinsky! Debussy!”, e outros notáveis mastigados, o timing perfeito de um telefone mal silenciado na plateia, a tocar Erik Satie, confunde-se com a paródia ao nosso desejo de sinalizar a virtude.
Com um sentido prático de criação, bater atrás do pano laranja, cenário estendido do teto ao chão, é uma metáfora de outra ordem de prioridades e perguntas a martelar cá dentro, antes de se apresentarem ao mundo. Como os tambores arrufados por turnos, são um marcador dessa urgência e pontada de angústia contemporânea («A mudança acontece na maneira de pensar! Mas tens de ser realista!»). Um aspeto de dúvida que se afasta do panfletário e pergunta antes: como é que se muda? (lembramo-nos às tantas do luminoso “Um cravo que toca”, de Filipe Pereira e Daniel Pizamiglio, apresentado no LU.CA em abril, como um díptico afetivo).
O duo apanha-se várias vezes a pensar, toma o pulso às estrofes e mobiliza as questões (“As coisas não vão ser como tu queres! – Acredito nas coisas pequenas!”), entre agridoces “ooohhh”, e celebratórios “eeeehh!”. Os figurinos, com ar espacial, metálicos, lantejoulas, refletem esse misto entre desconhecido e showbiz.
Enquanto pouco muda o mundo
Com paráfrases de Zeca Afonso, Frente-a-frente vai esboçando uma poética da ação que aproveita a Intervenção para atualizar as senhas (“Casa com um. Casa com dois. Muitos sem casa. Muitos sem causa. Causa comum”).
Quem canta está de olho no algoritmo e nas manchetes, mesmo quando o formato parece tão pueril como a perícia de Vahan ao uquelele, parte desse processo expandido. O naïf permite ver à transparência das intenções a complexidade das coisas – concebendo afinal o Mundo.
A leitura musicada dos jornais também regista parte já de um efeito de ler sempre a notícia não escrita das Notícias (“Estão a fazer um parque de estacionamento em baixo do Gerês. Vão fazer um Corte Inglês”). Sinaliza as contradições entre as políticas do sim e do não, ou o deslumbramento estrangeirado (“– Queres ouvir outra vez? – Sim, mas só se for em francês.”).
“O jogo mais básico é que permite a empatia, que não é uma coisa nada básica”, recorda Inês Campos em conversa fora do espetáculo. “Há muitas coisas que também nos inquietam no mundo, e como é que fazes para não paralisar perante imagens distópicas e de impotência. E voltar a pensar que a soma de muitas coisas pequenas soa a uma coisa grande. O que pode ser hoje uma revolução? Como podemos procurar espaços de mudar dentro do que cada um pensa, e manter energias solares?”
A gravitas desconcertante do que ouvimos desperta para um aspeto consequente do íntimo e do revolucionário, não se limitando a acusar a realidade de lhe dever um sonho. Vai dizendo, como o processo de criar, que afinal pouco não é poucochinho. “Estávamos com sonhos grandes e depois o material veio impor-se, fez parte do processo pensar em grande, mas para já vamos com calma, e a correr, e o espetáculo ainda cresce. E pode inspirar outras coisas. Estamos todos juntos” –, resume Vahan. “O material vai a si mesmo”, acrescenta Inês. “As coisas pequenas levantam do chão”, diz o concerto sobre esse monumento de formiga.
Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 15 e 16 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de frente-a-frente, de Inês Campos & Vahan Kerovpyan, e Kabeça Orí, de Aoaní & Joyce Souza / Associação Orí.
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