Por Lara Mesquita
A propósito, um pouco de ficção:
Mia vira à esquerda no cruzamento entre a Rua Morais Soares e a Praça do Chile. Começa a descer a Avenida Almirante Reis. Cruza-se com as pessoas que por lá passam e seguem as suas vidas. Ouve “The man I love”, de Billie Holliday.
Duas amigas (70 anos). A Senhora 1 traz um carrinho de compras com rodas; anda com alguma dificuldade. A Senhora 2 leva dois sacos de compras, num deles vemos as folhas do alho francês de fora.
Senhora 1 – É... Agora são as cataratas, mas a mim não me operam! Sempre a inventar doenças, se fosse assim a pessoa não fazia outra coisa se não tomar medicamentos.
Senhora 2 – Mas dizem que não custa nada.
Senhora 1 – A quem?
As duas riem muito.
Um pai (40 anos) de fato, com uma mochila de trabalho às costas e uma mochila de criança na mão, responde desatento à pergunta da filha (5 anos), que leva uma lancheira na mão.
Filha – Não, pai! Última vida, qual é a minha cor favorita desde o mês passado?
Pai – Azul.
Abaixo do Pingo Doce, um sem-abrigo (50 anos) varre o chão daquela que é a sua sala de estar.
Uma jovem mulher (cerca de 30 anos), muito bonita e bem vestida, grava uma mensagem de voz no telemóvel: Opá, desculpa, tenho andado a mil. Estou cheia de trabalho no escritório e terça-feira vou para Milão, à tal conferência de que te falei. Falei, não falei? Olha já nem sei, desculpa, Vanessa. Isto tudo com a mudança de casa não tem sido fácil. Desculpa, sei que estou em falta contigo. Mas agora quando voltar, a ver se as coisas acalmam e estamos juntas. Como é a tua vida na semana que vem? E como é que estás? Saudades.
Duas raparigas brasileiras (cerca de 25 anos).
Rapariga 1 com o braço direito em cima dos ombros de Rapariga 2 que leva, na mão esquerda, uma garrafa de vinho meio cheia. Bebe um gole e passa a garrafa à Rapariga 1 que também dá um gole.
Rapariga 1 – Não aguento mais esse vinho.
Rapariga 2 – Ah, mas ‘tá bom.
Rapariga 1 – ‘Tar, ‘tá, mas a gente já bebeu foi demais!
Rapariga 2 – Que demais? Quero ver você toda quentinha ouvindo o Alex lendo aquela poesia chata!
Rapariga 1 – Você que é chata, cala a boca!
Riem. Rapariga 1 beija Rapariga 2.
Um homem (cerca de 60 anos) fuma um cigarro e canta distraído: “Muda-se o ser, muda-se a confiança, todo o mundo é composto de mudança...”
Depois da esquina com a Rua Marquês da Silva, uma senhora de bengala estende uma revista a Mia.
Senhora da revista – Boa tarde minha querida, a menina já ouvir falar de Deus Mãe?
Mia – Já. Mas estou atrasada, desculpe.
Um casal estrangeiro (cerca de 30 anos), cada um com uma pequena mala de viagem com rodas. Ela tenta seguir direcções através do mapa no telemóvel.
Estrangeira – L’endroit devrait être ici!
Estrangeiro – Mais clairement pas. Merde!
Estrangeira – Calme toi!
Estrangeiro – Qu’est-ce que cela dit là? Donne moi ça.
Uma mulher (45 anos), ao telemóvel, passeia o seu cão, assistindo a esta cena. Aproxima-se do casal.
Mulher – Besoin de l’aide?
A estrangeira mostra-lhe o mapa no telemóvel.
A Mulher indica o caminho com as mãos.
Mulher – C’est près d’ici. Tourne ici à la droite, puis dans la deuxième à la gauche, et sont la. Bonne chance! Au revoir.
Casal estrangeiro – Merci!
Mulher (ao telemóvel) - Nada, uns franceses precisavam de ajuda. Estavas a dizer...
Outra mulher (cerca de 40 anos) vestida de forma prática, mochila às costas, ao telemóvel. Ouvimos a amiga em off.
Outra Mulher – Fofinha, entrei no doutoramento!
Amiga – Opá, a sério? Não acredito! Parabéns! E então, estás histérica?
Outra Mulher — Sim, estou mesmo feliz. Foi uma lufada de ar fresco.
Amiga – Doutoramento em quê mesmo?
Outra Mulher – Comunicação social.
Amiga – Isso!
Outra Mulher - Tivemos hoje a apresentação dos projectos e tal.
Amiga - E os temas são dentro da mesma área do teu?
Outra Mulher - Não, os projectos são todos bué diferentes uns dos outros, o que é interessante.
Amiga – Opá, eu estou histérica, esquece! Parabéns, amor! Temos de ir beber a isso! AH!! Parabéns! Vai correr bem, tenho a certeza. Estou mesmo feliz por ti.
Outra Mulher – Obrigada, querida. Espero que sim! Sim, depois vamos ao Kimbo celebrar. Beijinhos.
Outra Mulher cruza-se com Mia no fim da chamada e sorri para ela. Mia, que a vinha a observar, sorri de volta, empática.
Mia pára de repente. Olha para trás. Observa a imagem das pessoas com quem acabou de se cruzar a desaparecer nas suas costas. Olha para a frente. Volta a olhar para trás. Volta a olhar para a frente.
Mia – Não, espera...
Mia percebe que, tal como ela, nenhuma das pessoas com quem se cruzou era branca.
Lara Vanessa Cossa Mesquita (1986) nasceu em Lisboa, filha de mãe moçambicana e pai açoriano.
Estudou ciências no ensino secundário, Psicologia e Direito na universidade.
Fez o curso de formação de actores na In Impetus (2009/2010).
É licenciada em Teatro - ramo actores, pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016).
Trabalhou como actriz em projectos de cinema, televisão e teatro; destaca as colaborações com Luís Miguel Cintra, Francisco Salgado, Griot, As Crianças Loucas e Rodrigo Francisco.
É professora de expressão dramática desde 2016.
Criou e dirigiu a oficina Artes nas Férias do CCB, em 2020.
Em 2021 estreou a sua primeira criação original Sempre que Acordo. O texto que escreveu para este espectáculo valeu-lhe o Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina.
Esta iniciativa resulta de uma parceria Coffeepaste / Prado. A Prado é uma estrutura financiada pela DGArtes / Governo de Portugal para o biénio 2020/2021.