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Rés-do-chão #4: autoficção

Por

 

Mariana Dixe
11 de Abril de 2025

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Rés-do-chão #4: autoficção

«Querido Diário,

Hoje o dia começou muito bem. De manhã, logo que acordei, abrimos os presentes. Recebi várias coisas mas o que preferi foi o CD da Shakira, o CD do Boss AC, uma máquina de recibos e um relógio. A tarde foi normal. À noite fui jantar à minha avó e descobri que apesar de o meu tio ser chato, às vezes também é super divertido. Ensinou-me a jogar xadrez. Adeus.»


Eu tinha nove anos e recebi um diário pelo Natal. Escrevi um total de três textos. Este é um deles. Não tenho nenhuma lembrança da máquina de recibos ou do relógio, mas guardei durante muito tempo o trauma de ter tentado aprender a jogar xadrez e isso me ter levado às lágrimas, tal era a falta de empatia do meu tio, com quem devia ter jogado antes uma paciência. Hoje, seria capaz de o descrever como divertido, mas naquela noite não sei por que o fiz.


Distinguir a realidade da recordação que guardamos dela é quase tão difícil como foi para mim, na altura, identificar a rainha ou o bispo. Mais ainda se escrevermos a partir daquilo que recordamos. Nos diários, talvez precisemos de duas quartas paredes; talvez vejamos a vida real por duas janelas do rés-do-chão contíguas, em que passam a existir duas ficções: a memória e a escrita.


Escrever é ficcionar. Pergunto-me se as autobiografias, como os diários, não são todas ficções, porque mesmo baseadas em factos, compõem o mundo numa folha de papel demasiado pequena para o conter e recontam uma história recordada. Não só a pessoa autobiografada recorda a realidade, encoberta pelo passar do tempo, como quem lê imagina uma segunda ficção.


Ainda assim, a literatura (e não só) assumiu uma espécie de género-mescla para as autobiografias ficcionais, como se não o fossem todas: a autoficção. Sob este pretexto, quem escreve, mesmo escrevendo sobre si e sobre a realidade, pode dar-se ao luxo de inventar, como se criasse personagens e mundos imaginários.


«Uma autobiografia é uma missão impossível. Deveria escrever um texto rigoroso, só que sou sempre personagem de mim própria, mesmo que narre tudo na primeira pessoa e me apelide Dulce, como se não estivesse a inventar-me.»

“Autobiografia não autorizada”, Dulce Maria Cardoso


Já tinha vontade de escrever nesta coluna sobre diários e autoficção, mas a crítica de João Pedro George ao livro “Leme”, de Madalena Sá Fernandes (ou antes, ao corpo, aos amigos e às redes sociais da autora) trouxe-me novos raciocínios sobre o tema. 


Já tinha ouvido a Madalena (não a conheço, mas parece-me que escrevendo e, por isso, ficcionando, a posso tratar assim) confessar em entrevista que a autoficção, com a experiência deste livro, foi uma mistura de territórios com a qual não estava preparada para lidar. A personagem e a autora confundem-se a tal ponto que as perguntas dos leitores se tornam demasiado pessoais. A Madalena descreve já ter saído a chorar de um clube de leitura por estarem a entrar na vida dela muito para lá da história. Talvez como eu saí em prantos de uma partida de xadrez.


Pessoalmente - e tenho vindo a afirmá-lo -, adoro quando não consigo saber exatamente onde termina a ficção e começa a realidade, ou vice-versa. Lembro-me de isso me divertir, por exemplo, quando li “A História de Roma”, de Joana Bértholo. Interrompia uma passagem sobre Buenos Aires para consultar a biografia da autora, ver se havia alguma menção à cidade. Gosto particularmente quando a dúvida se mantém e, mesmo lida a contracapa, é impossível saber com certeza.


Às vezes, nem as próprias pessoas sabem. “I may destroy you”, série de Michaela Coel, é um exemplo de autoficção fora dos livros. A personagem principal, Arabella, é interpretada pela criadora da série e inspirada na sua vida real. A própria admite: I don’t even know where Bella stops and where Michaela begins.


E outras vezes, a personagem é tão distante que vive noutro corpo e tem outra voz, mas cede-nos o seu relato. “Vista Chinesa”, de Tatiana Salem Levy, pode ser visto como uma autoficção partilhada ou, como lhe chama a autora, «autoficção do outro». A Tatiana (vou continuar a viver as minhas próprias ilusões) apropria-se da história de uma das suas melhores amigas e conta-a na primeira pessoa, acrescentando pormenores ficcionados. 


Novamente fora dos livros, a peça de teatro “Cadernos de”, de Raquel S., talvez faça o mesmo. Alguém deu à Raquel um conjunto de quarenta e um cadernos escritos ao longo de vinte e um anos (afinal a abertura deste texto com o excerto de um diário não foi tão descabida quanto podia ter sido) e a liberdade para fazer com eles o que quisesse.


Não acho que faça parte do trabalho destas autoras traçar a tal linha que distingue realidade e ficção, como não acho que faça parte simplesmente apagá-la. Aquilo que sei é que a autoficção não é um convite ao esbatimento dessa linha fora do contexto da obra. Podemos criar a personagem que quisermos e imaginar corpo, amigos e redes sociais para ela, mas não podemos baralhar-nos ao ponto de esperar controlar também a autora. 


A beleza da autoficção é saber que a fronteira entre autobiografia e ficção está lá, e vemo-la na própria palavra, mas é impossível reconhecê-la por baixo de tantos outros traços: a linha existe, mas vai desaparecendo conforme se desenha sobre ela.


«O Paulo deixou-me marcas em tinta permanente.
Ele dizia que se podia desenhar em cima de qualquer coisa. Este livro é a minha tentativa de desenhar por cima dele.»

“Leme”, Madalena Sá Fernandes


Quanto a João Pedro George, a Tati Bernardi tem um curso sobre autoficção que pode ser muito útil, mais que não seja pelo título: “Fale mal mas fale de você”!

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