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Num país ainda a abrir-se ao mundo, a década de 90 marcou o despertar de uma revolução silenciosa nas pistas de dança portuguesas. Foi nesse contexto que nasceu uma cultura rave vibrante, comunitária e profundamente transformadora — uma história que até hoje permanecia em grande parte por contar.
É precisamente essa lacuna que o documentário Paraíso procura preencher. Fruto de uma década de investigação, recolha de arquivos e paixão partilhada, o filme mergulha na génese da música de dança em Portugal, resgatando memórias, sons e imagens esquecidas de uma era de liberdade e experimentação.
Conversámos com João Ervedosa e Maria Guedes, produtores do documentário, que nos revelaram como um simples programa de rádio se transformou num projeto cinematográfico ambicioso, feito com os próprios meios, com os próprios ritmos e, acima de tudo, com o coração. Uma verdadeira carta de amor à cultura rave nacional — e à comunidade que a fez acontecer.
Como nasceu a ideia do documentário "Paraíso"? O que vos motivou a transformar um programa de rádio numa produção cinematográfica?
A Paraíso começou como um programa de rádio na Rádio Quântica, onde durante cinco anos conversámos com pioneiros da música de dança em Portugal. Eram entrevistas informais, mas cheias de histórias incríveis e revelações que sentimos que não podiam ficar apenas no registo áudio, que havia uma componente visual que se perdia.
Alguns desses convidados iam-nos dizendo que tinham nos seus arquivos pessoais, gravações em VHS de raves e clubes dos anos 90, flyers, fotografias, etc. Percebemos que havia uma riqueza visual e histórica que merecia ser documentada noutro tipo de plataforma, mais imersiva.
O que representou para vocês a década de 90 na música de dança portuguesa? Sentem que havia uma urgência em documentar essa época?
Os anos 90 foram uma década de descoberta, transformação e liberdade. Foi quando se começou a criar, de forma espontânea, com muita dedicação e entusiasmo, uma scene nacional de música eletrónica. Havia uma energia e uma necessidade quase urgente de ocupar espaço, de celebrar em conjunto.
Nós próprios crescemos com esta música, e foi esse espírito de comunidade, partilha e "do it yourself" que nos inspirou e formou enquanto DJs, produtores e programadores culturais.
Sentimos, por isso, uma urgência clara em documentar esta época. Não só para preservar a memória e dar voz aos seus protagonistas que nunca foram devidamente reconhecidos, mas também porque vemos hoje uma nova geração a reconstruir comunidades e circuitos alternativos — muitas vezes inspirada no consciente coletivo que nasceu desse primeiro embrião de cultura rave que nasceu em Portugal nos anos 90.
Porque sentiram que essa história ainda não tinha sido contada da forma certa?
A geração que viveu essa época estava mais ocupada em vivê-la do que propriamente focada em documentá-la. Sendo também uma era sem redes sociais e sem forma de registar ou partilhar o que acontecia de forma consistente, esta história nunca foi contada com profundidade, estando limitada a alguns suportes físicos — flyers, cassetes, discos e fotografias perdidas em arquivos pessoais.
Na altura, os meios de comunicação social davam muito pouca atenção a esta contra-cultura — e, quando davam, era quase sempre com um olhar moralista ou sensacionalista, retratando as raves como um fenómeno perigoso, algo que ameaçava os “bons costumes”.
Queríamos um retrato mais honesto, mais humano e mais completo, feito a partir do interior da cena e não de fora para dentro.
Quais foram os maiores desafios ao longo destes 10 anos de produção?
Vários! Começando pelo facto de não sermos cineastas de formação. Aprendemos muito pelo caminho, rodeámo-nos das pessoas certas e, acima de tudo, conseguimos manter a motivação viva ao longo dos anos.
O maior desafio foi, sem dúvida, sermos uma equipa muito pequena, e por isso, termos de acumular várias funções ao longo de todo o processo. Foi um projeto totalmente independente, feito com muito esforço, dedicação e uma enorme dose de paixão.
A logística também foi um desafio: reunir 38 pessoas, captar som e imagem com meios limitados, restaurar arquivos antigos... e conciliar tudo isto com os nossos trabalhos como DJs, designers e produtores.
Como foi o processo de recolha do arquivo audiovisual e sonoro?
Começou com os próprios convidados a mencionarem que tinham gravações guardadas em casa. Aos poucos, fomos abrindo caminhos para acervos pessoais e institucionais — desde coleções privadas até arquivos da RTP, SIC e MTV, passando pelo espólio de alguns fotógrafos que documentaram a rave scene portuguesa, como é o caso de Da Fonseca, João Curiti, Luísa Ferreira e Rita Barros.
Foi um processo longo, desde inúmeras horas passadas a ver cassetes VHS, à digitalização de vários formatos até à curadoria final das imagens e sons que integraram o filme.
Houve algum achado inesperado que tenha mudado o rumo do projeto?
Sim, sem dúvida. Um dos momentos mais marcantes foi quando visionámos pela primeira vez uma cassete com imagens da aquela que é considerada a primeira rave em Portugal, no Convento de S. Francisco, em Coimbra, que parecia tirada de um filme.
Ficámos completamente estupefactos — não só pela energia da festa, mas também pela estética: a roupa, a maquilhagem, a dedicação que todos colocavam na rave.
Aquelas imagens ajudaram a definir o tom visual do documentário, e reforçaram ainda mais a urgência de mostrar que havia, de facto, uma cena com identidade própria, ousadia estética e um desejo de liberdade que muitas vezes foi esquecido ou ignorado.
Por que decidiram evitar entrevistas clássicas para a câmara e optar por conversas espontâneas entre protagonistas?
Essa decisão partiu do realizador, Daniel Mota. Desde o início, ele quis evitar o formato clássico de talking head — com uma pessoa sentada, a falar diretamente para a câmara — porque nos pareceu demasiado distante para a história que queríamos contar.
Esta é uma cena com poucos protagonistas, e muitos deles conheceram-se nos anos 90 (alguns até antes), trabalharam em conjunto, partilharam pistas de dança, viagens e vidas. Havia uma intimidade palpável entre muitas das pessoas envolvidas, e o Daniel percebeu que essa proximidade podia ser usada a favor do filme.
Optámos então por juntar pares com uma ligação pré-existente e filmar conversas informais entre eles, sabendo que isso traria uma espontaneidade que dificilmente se conseguiria numa entrevista direta para a câmara.
Como foi trabalhar com o realizador Daniel Mota?
Foi essencial. O Daniel entrou neste projeto com uma generosidade enorme e uma sensibilidade visual que nos ajudou a transformar esta ideia numa linguagem cinematográfica coesa.
Fez de tudo: realizou, filmou, captou som e ainda fez a correção de cor. Foi um verdadeiro pilar técnico e criativo deste filme.
A vossa experiência como designers e DJs influenciou a linguagem visual e sonora do documentário?
Sem dúvida. A banda sonora foi criada por nós, com faixas feitas pelos próprios protagonistas e participantes do filme — pessoas que ajudaram a construir esta scene e cuja música tem, naturalmente, uma ligação emocional e histórica ao que é contado no documentário.
Visualmente, a linguagem estética que desenvolvemos está não só ligada ao imaginário da cultura rave dos anos 90, mas também à identidade visual da nossa editora, Paraíso.
Procurámos que tudo — desde os títulos, oráculos e até à forma como as imagens são montadas — refletisse o espírito da cena que estamos a documentar: crua, emocional, livre e com uma sensibilidade gráfica própria.
"Paraíso" é descrito como uma carta de amor a uma cultura. Que papel acham que essa cultura teve (ou ainda tem) na identidade contemporânea portuguesa?
A cultura rave foi — e ainda é — um espaço de liberdade e inclusão. Nos anos 90, foi uma resposta criativa e comunitária a um país que estava ainda a abrir-se ao mundo.
Hoje, continua a ser uma linguagem de resistência, de expressão livre, e um reflexo da diversidade e inquietação criativa dos ravers.
Como veem o impacto da cena rave portuguesa no panorama internacional da música eletrónica?
Portugal sempre esteve um pouco na periferia, mas com uma identidade própria muito forte. Felizmente hoje, vários artistas e coletivos portugueses são reconhecidos internacionalmente, e há uma atenção crescente à nossa scene.
Este documentário também é uma forma de mostrar que houve uma base, uma história e uma coerência estética que nos distingue — e que merece ser conhecida pelo resto do mundo.
Depois de “Paraíso”, têm planos para continuar a explorar a história da música eletrónica em Portugal?
O espírito da Paraíso sempre foi o de dar visibilidade, ligar gerações e preservar aquilo que tantas vezes é efémero. Por isso, queremos continuar a recolher memórias, registar histórias e construir, aos poucos, um verdadeiro arquivo da música eletrónica em Portugal — feito a partir de dentro, com o mesmo sentido de comunidade que deu origem a tudo isto.
Como antecipam a receção do filme, especialmente por parte das gerações mais novas que não viveram aquela época?
Esperamos que seja um ponto de ligação. Que quem viveu aquela época sinta o reconhecimento, e que quem não viveu sinta a curiosidade de ir mais fundo.
Este projeto fez-nos perceber que a música de dança em Portugal tem uma história rica, feita de luta, alegria, comunidade e liberdade — e que tudo isso continua a ser urgente hoje.
Foto: Still do filme "Paraíso"
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