Por Patrícia Portela
“O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. (…) o meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto a cara a um nome preciso. (…) Não me pergunte pois idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, passado, não, nome também: não. Sexo, o meu sexo sim: o meu sexo está livre de qualquer ofensa, e é com ele-só-ele que abrirei caminho entre eu e tu, aqui. (…) O meu nome não.”
Assim começa A Fúria do Corpo de João Gilberto Noll.
*
Hoje saí com sol de um país chuvoso para aterrar com chuva na cidade do sol.
Hoje subi a escadaria de um teatro nacional para ver O que não acontece, quando tanto se passa e me ultrapassa. Muitos à minha volta estranham os livros que trago em sacos, alheios a uma feira do livro onde tantos outros se passeiam, alheios a este festival que se chama ponte e que agora decorre. Entre o parque do rei inglês e o teatro da rainha, uma linha recta. A pé, nem vinte minutos.
Entro no pequeno auditório, escolho um lugar na segunda fila, as luzes ainda estão acesas, termino o meu romance com Noll.
…sabemos de agora em diante que somos perdedores sim, mas exploraremos a devastação da nossa derrota como quem garimpa na miséria riquezas indizíveis, não temos outro tesouro senão a nossa pobreza, tocamos a miséria da Cidade não para chafurdarmos prazerosamente no lodo da impotência mas para chegarmos até aqui, alçando nossa penúria, a nossa escassez, a nossa privação a inéditas rotas, vamos sim, vamos partir para o Sul lá no meio do mato, uma horta nos espera, pomares, já vejo unhas pretas na terra, Afrodite inclina a cabeça e me olha toda compadecida, me confessa quase em sussurros que a tia no Sul nunca existiu, nem muito menos um mato para onde ir, nada, estamos ilhados na Cidade, nem horta, nem pomares, nenhum cais onde aportar o nosso idílio…
Começa o espectáculo.
Primeiro uma mulher. Canta quase Neil Young.
Quase what love.
Depois um homem.
Quase a vê. Mas não.
Quase a toca. Mas não.
Quase a agarra. Mas não.
Ela quase que vice-versa. Mas também não.
Cada gesto não passa de uma ameaça.
Cada investida é um ensaio que se sabe nunca ser geral.
Os corpos de ambos pertencem-lhes,
pertencem-se,
são em si, próprios, e no entanto, escolhem não se penetrar.
Desviam-se. Até no olhar.
E “tudo a continuar ao mesmo tempo, sempre ao mesmo tempo.”
Tudo a avança sem eles.
E “tudo a continuar ao mesmo tempo, sempre ao mesmo tempo.”
Assisto, sentada, à mais comovente contradição, penso.
Há mais corpo nas palavras de Noll do que nos gestos de Roriz e Dias.
Há mais palavras nos corpos de Sofia e Vítor que entre Afrodite e o resto do mundo.
Em A Fúria do Corpo quando se perde a casa, quando não se pode dar porque não se tem, porque não se sabe, porque não deixam, resta estar aqui, escolher a morte ou a persistência da carne. Quando se perde tudo, há sexo. O encontro sem mediação social ou tecnológica.
Somos nós a continuar como quem acaba qualquer coisa.
Em O que não acontece, seduzidos por um vazio rigorosamente presente e iluminado, os corpos contornam-se para se evitarem. Escondem-se atrás das palavras, silenciam-se. Quase mudas, as palavras reorientam-se no dicionário dos corpos.
Porque um corpo que pensa mas não diz ainda tem vocabulário.
Porque um corpo que não se mexe ainda se desloca.
A abolição da hierarquia entre o dizer e o fazer que Sofia e Vítor procuram, mutila-os no encontro. Com delicadeza. Como se houvesse distância.
Cria um fosso impossível, porque não há fronteira entre gesto e frase, não há separação. Há ausência.
Nós a continuar como quem começa alguma coisa.
Noll é a confirmação da palavra fisica. Que dói. Que confirma a mentira de vivermos depois da História, que não somos apenas consumidores de bens a desempenhar um papel adequado no desenrolar do progresso.
Quando não se tem tecto, nem chão, nem pão, nem dinheiro, nem emprego, nem futuro, resta a matéria viva. A minha na tua. Quando se perde tudo, resta o corpo. Arremessá-lo contra outro na explosão.
Sofia e Vítor nomeiam-se para se vacinarem um contra o outro. Para se afastarem. Na imposta separação entre gesto e palavra, a performance acaba por respirar um niilismo como efeito secundário dos antídotos diários.
No erotismo marxista do romance de Gilberto, os corpos recusam soletrar o nome. Existem. Todos em simultâneo e todos uns nos outros: leitores, autores, Afrodites.
Porque Sexo é revolta, não é terapia. Nem é arte, nem é biologia. É manifestação.
Na performance, eles Subvivem.
No romance, Sobrevivem.
E entre eles: eu. A ver-me nada mais do que a mim.
Porque Ninguém lê ou vê (ou sente!) senão a instersecção de um si próprio.
No meu entroncamento privado, a circunstância força o diálogo da Fúria do corpo com O que não acontece. No fim da conversa, uma questão:
Como pertencer ao mundo e ser-se fiel ao que se é? Ao que se noutro?
*
Chego a casa, telefonas-me. Oiço-te: quero-te. Aquecemos. O resto segue-se. Saio de casa em busca do teu tu com tudo o que sou quando te tenho por perto.
Daqui aí, os quilómetros que percorro são muito mais do que os que a geografia impõe.
Chego.
Agora ao pé de ti.
A rir, somos completamente só nossos.
Apagamos as luzes. Dançamos. Mas não como nos palcos, não como nos bailes. Não como nos livros. Mas à nossa maneira.
Patrícia Portela nasceu em 1974. Vive entre Lisboa e Antuérpia. Escreve para vários formatos. http://www.patriciaportela.pt/
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