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Por muito que queiramos falar em ficção, quando nos referimos às artes do palco, as realidades heterogéneas e diversas em cena são muito mais eloquentes do que os jogos narrativos que a dramaturgia articula. Em síntese: as pessoas que agem em palco, connosco e para nós, assim como todas as suas características intrínsecas particulares, afetam-nos e colocam-nos de uma determinada maneira, face aos efeitos cognitivo-emocionais das diferentes camadas de ficção e das narrativas (o que se passa, o que se diz, o que se faz). Por isso é tão radicalmente importante que no palco entrem pessoas transgénero e de outros coletivos menorizados e marginalizados. É uma questão de justiça e de humanidade, motivos maiores e imprescindíveis numa sociedade civilizada e culta. É também uma questão importante no plano artístico, porque é difícil conceber a criação artística cingida a códigos ou espartilhos fechados nos cânones, ou nos preconceitos que nos limitam na vida. Por tudo isto e mais do que isto, foi importante que no 12º GUIdance (2023) em Guimarães, o espetáculo inaugural deste conceituado festival fosse BAqUE de Gaya de Medeiros, junto de toda uma equipa de artistas trans, e que esse baque, ademais, fosse no palco principal, no Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor. Aquela experiência, para mim, rompia com todos os preconceitos que eu trazia no que diz respeito a mulheres e homens trans, porque nessa peça não havia nenhuma demonstração de género e, portanto, nenhuma assimilação a clichés. Também não havia nenhuma vontade de “épater les bourgeois”, embora os excertos de histórias pessoais que se teciam na performance fossem fortes, pelas situações difíceis que transluziam.
Na 13ª edição do GUIdance (2024), programou-se ATLAS DA BOCA de Gaya de Medeiros, uma peça anterior no tempo a BAqUE, um duo com Ary Zara.
Independentemente do número de pessoas a agir em palco, trata-se de duas peças igualmente intimistas, que sabem fugir de qualquer tipo de sensacionalismo, embora a matéria que tocam seja muito emotiva e ligada aos desejos nus de realização pessoal em contextos geralmente adversos. Mas isto é feito da perspetiva política do amor, do respeito consigo próprias, imprescindível para poder haver também um respeito com as outras pessoas. Da igual maneira que esse investimento em delicadeza, envolvimento e entrega acaba por reverter em nós.
ATLAS DA BOCA formula o mundo pela boca e pelo corpo – que também é uma boca – a falar-nos em segredos, que se sentem e se intuem mais do que se entendem. Pode parecer que necessitamos entender, mas raramente o entendimento profundo vem do nível informativo das palavras. Acho que é a experiência e as perceções que ela nos fornece o que nos faz perceber a “outredade” e a nós próprios nela.
Gaya e Ary estão connosco e oferecem-nos uma experiência em que o pessoal biográfico, com as suas mudanças e feridas, se transmuta numa arte alegre, sensual e celebrativa, com momentos de beleza plástica de patamar mitológico, numa reinvenção humaníssima do mundo. Um estar em palco que dilui o conceito tradicional de coreografia, com um movimento que nunca é reprodutivo ou imitativo, que sempre cria e expande emoção e afeto. Um movimento muito para além das poses e dos clichés, ou de afãs demonstrativos, agarrado numa intimidade que pode ser partilhada, sem a fulminar nem a colocar no mercado do sensacionalismo. Porque a intimidade aqui é verdade e apresenta-se com toda a sua força, tão delicada, tão frágil e tão impressionante.
As composições coreográficas parecem saídas da felicidade de brincar como crianças livres, entre simulacros de luta e abraço. Aquilo que se nos diz tem o tom da confidência amiga e, portanto, oferecesse-nos com a prenda da confiança que nos une. Isto, nestes tempos de pouca confiança e do individualismo e da desunião que o deus dinheiro institui, é quase revolucionário.
ATLAS DA BOCA não é um atlas da língua, não é um atlas linguístico, é-o, porem, dessa parte do corpo pela que sai o espírito. A boca de beijar e de falar, mas também a de lamber, a de morder, a de beber, a de comer... a de viver e até a de morrer. “Por la boca muere el pez” no ditado espanhol. É uma coleção de mapas destas “corpas” (palavra que aprendi da Cláudia Galhós), que abrem a nossa perceção à possibilidade humana de construir a nossa identidade além das determinações biológicas. É Atlas, titã da mitologia grega, na força titânica e transversal para viver da maneira que se quer viver, sem predestinações nem preconceitos.
FICHA ARTÍSTICA:
Direção e produção: Gaya de Medeiros
Criação e atuação: Ary Zara e Gaya de Medeiros
Provocação, conceção e design do “Breve Atlas da Boca”: João Emediato
Direção técnica: Ricardo Pimentel
Desenho de luz: André de Campos
Operador de som: Milton Estevam
Tradução e legendagem: Joana Frazão
Gestão: Irreal
Coprodução: Alkantara e Companhia Olga Roriz
Apoio à criação: Self-Mistake
Apoio institucional: República Portuguesa – Cultura | DGARTES - Direção-Geral das Artes
13º GUIdance (Guimarães). Black Box do Centro Internacional das Artes José Guimarães, 8 de fevereiro de 2024.
Afonso Becerra de Becerrea. Encenador, e dramaturgo em sentido amplo (criação, mas também, e muito, análise e reflexão sobre espetáculos e sobre as artes performativas). Professor na Escola Superior de Arte Dramática da Galiza. Diretor da erregueté e colaborador com rubricas sobre artes cénicas em diversos jornais, na Televisão e na Rádio galegas. Doutor em Artes Cénicas pela Universitat Autònoma de Barcelona. Licenciado pelo Institut del Teatre de Barcelona.
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