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O cenário tem uma tela de fundo laranja-amarelada que cobre também parte do chão, enchendo o espaço de calor. Dois pequenos bancos do mesmo tom esperam os intérpretes ao centro; nas laterais, diferentes instrumentos. Frente-a-Frente trata sobre práticas de arquivo, apropriação, jogo e uma espécie de corta e cose entre estilos de música popular de distintas geografias e culturas do mundo. O senhor nomeado no programa, Ramos Indiano, nunca chega a aparecer, mutou: em vez de se focarem na sua obsessão com Bollywood e as suas trancanholas, os artistas levam o público numa viagem inspirada pelas práticas de apropriação e de mistura.
A Inês e o Vahan estão vestidos para uma festa: o guarda-roupa simples e cintilante a complementar-se entre o preto e o prateado. Os detalhes verdes metálicos e os cortes transportam para algum tipo de realidade alternativa que não é bem aqui, mas também não é longe. Essa sensação de familiaridade distante difunde-se por todo o espetáculo. Frente-a-Frente segue um decorrido que passa por referências musicais tão multicontinentais como populares portuguesas, passando por diferentes idiomas e linguagens inventadas, sem nunca explicar o que vem de onde em que momento. Não precisamos realmente dessa informação: através da intriga que é receber misteriosos troços em pastiche, tentamos encaixá-los nós mesmas.
Ainda que se possam distinguir temas separados, há todo um processo de transições incitadas ou pela música, ou pelo movimento, ou pela dinâmica relacional em palco – entrando num território teatral e coreográfico. As posições estáticas do início da peça revelam-se numa prestidigitação, quando das mãos escondidas e do fundo dos bolsos surgem maracas vermelhas e desvenda-se um jogo rítmico contrastante com a cena anterior. Mais tarde, Vahan interrompe Inês para expressar admiração pelas suas palavras e dali sai uma brincadeira de gírias onde se repete e remistura “tava tipo ya tipo pá” e a onda gerada pelas consoantes desperta um novo instante de percussão. Mais uma vez, quando algo parece conhecido, muda, ou, nas palavras de Vahan, «tudo já é outra coisa», uma característica da tradição oral onde com cada passagem se acrescenta ou retira algo. A intimidade que transpira da dinâmica do duo chega a parecer fácil: quando minuciosamente completam as sílabas um do outro e emerge a frase «a mudança acontece na maneira de pensar», a articulação revela uma proficiência técnica – uma linguagem musical e lúdica em comum.
À medida que decorre o espetáculo, os espaços entre os intérpretes parecem cada vez mais familiares: como conversar entre vizinhos à varanda, ou comentar notícias com alguém que encontramos no café, mas cujo nome nunca lembramos. Inês incluso pergunta a Vahan: de onde é que tu eras? Outro eco do familiar distante.
Os sons que se transformam em sílabas que se transformam em palavras fazem-se enunciados políticos revolucionários. Conectando com uma linhagem de canção de protesto, há algo nos slogans que trai a sensação de intimidade – entre a varanda da casa e a praça pública, já não sabemos bem onde estamos.
Quando a frase «se há salário mínimo porque não salário máximo» é intercalada com brincadeiras, acaba por confundir se a demanda é para ser levada a sério ou não. Aí, esta obra, onde a frase “acredito nas pequenas coisas” é também lema, parece não confiar em si mesma e no poder que dela já emana.
Inês Campos e Vahan Kerovpyan são amigos há uma década, mas é a primeira vez que colaboram. Individualmente, têm desenvolvido um corpo de trabalho relacionado com a voz, a música tradicional e a performance, tendo os dois experiência com o público infantil e familiar. O sentido de viagem e de multiculturalidade brota organicamente das próprias biografias: Inês há muito que explora repertório tradicional português; e Vahan, de origem arménia nascido em Paris e transplantado no Porto, tem criado e participado em projetos que nascem desses cruzes diaspóricos. Frente-a-Frente alinha-se com o trajeto de cada um, entrelaçando-os: junta todos estes recursos para gerar algo novo, frente a frente e lado a lado.
A tradição oral que nutre a obra não chega a convidar a participação direta do público, mas tem algo de contagioso. Os pés batem, os corpos ondulam, rimo-nos com a cumplicidade, acendem-se memórias de canções. Ao sair, dá vontade de cantar. Quando termina, lembramo-nos de que a voz é sempre música: o tom, o volume, os ritmos, os gestos. Talvez seja esse o fruto da tensão entre o conhecido e o desconhecido que percorre o espetáculo: dá-se um câmbio de perceção, um despertar para a insistente poesia de todo o som.
Saímos com um sorriso.
Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 15 e 16 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de frente-a-frente, de Inês Campos & Vahan Kerovpyan, e Kabeça Orí, de Aoaní & Joyce Souza / Associação Orí.
Foto por Bruno Simão
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