Por Keli Freitas
Com uma caneta chinesa comprada dos nepaleses na rua do Zaire, anoto meu telefone no caderno francês da minha colega do Japão que não sabe onde fica a estação do metrô de Roma. Tivemos de pedir à professora de Estudos Portugueses para falar em inglês porque as italianas não estavam a perceber nádegas. Baixei alguma coisa sem querer em algum momento por algum motivo e meu telefone agora está todo en español. Nuestro prédio cheira a caril porque nuestros vizinhos indianos, ao que todo indica, comem caril todos los dias en todas las refeiciones. Marta disse que lasanha à bolonhesa não pode levar presunto, eu disse que claro que pode levar presunto, mas eu disse presunto querendo que ela entendesse fiambre, mas ela só entende fiambre se eu digo fiambre. Li na vitrine “Últimos Pares” e cá comigo, pensei: “Last Paris”. Os meninos tailandeses todos jogam bola na praça com a camisa do Cristiano Ronaldo.
Perguntei à Gigi se no carnaval dela havia blocos na rua, ao que Gigi me respondeu: O que são blocos? Nunca pensei que me veria na ocasião de ter de explicar o que é um bloco de carnaval. Neste ocasião percebi que nunca se está suficientemente preparada para explicar o que é um bloco de carnaval. Gigi outro dia disse “não gosto nada de água, mas aproveito quando tenho sede”. Nunca vi a Gigi rir tanto como no dia em que eu disse “Tupperware”: Tapiué. Eu gosto quando ela vê um prato de comida e diz: “tem muito bom aspecto”, sem pronunciar o “c”. Ou quando diz, depois de um gole de cerveja: “isto soube-me pela vida”. Ou quando atende o telefone já dizendo “Que é feito de ti?”. É claro que nem eu nem Tetê sabíamos que iscas de porco era o mesmo que fígado de porco; só quando o prato chegou é que vomitamos. A mim pareceu que o fígado do porco tem aspeto de carne de baleia. Nunca vi carne de baleia na vida, mas foi a impressão que deu. Alfredo foi ver baleias semana passada para esquecer os problemas amorosos, amou ver baleias e voltou, com os mesmos problemas amorosos. Chutar o balde, demorô formá, enfiar o pé na jaca, perrengue, quiproquó e bagaceirice eu já desisti de explicar.
Claro que entrei em desespero quando li na mensagem: “Vou deixar-te”. Jamais poderia imaginar que era só uma forma alternativa de dizer “Boa noite”, “Tô indo lá”, “Beijão”. Quando contei isso à Jow ela riu da minha cara, mas achou a história bonita. Disse: “O Brasil não é o país dos sozinhos, por isso escutar vou deixar-te soa tão desesperador”. O Brasil não é o país dos sozinhos? Depois lembramos do dia em que a Elisa colocou adoçante na cerveja e voltou a ficar tudo bem. Para dias tristes, a Jow me receitou ouvir “Luminoso” do Gil, deitada no chão do quarto olhando para o teto. Eu obedeci. Outro bom remédio é sair na rua com sol e botar “O eterno Deus da mudança”. Mas depois concordamos que “O eterno Deus da mudança” só faz sentido escutar numa rua ensolarada do Brasil.
O badalar dos sinos da igreja em frente à escola onde dava aula para os miúdos, em Ameixoeira, é o mesmo que o do relógio da minha vó, em Vassouras, que agora está em casa do meu pai, no Recreio. Quando ouço este mesmo badalar por exemplo, na Gafanha de Nazaré, em Beja, Torres Vedras, algo se passa em mim, e não sei bem o que, nem importa. O avô da Cláudia já não consegue matar as galinhas que cria, porque agora tem mais tempo para ficar com elas. Ele não sabe escrever o próprio nome, assina com um X os documentos do banco, anda pelo quintal devagar e firme, com umas chinelas alemãs de couro que ganhou no Natal. Os coelhos ele ainda mata sem pestanejar.
No café dos brasileiros, ao lado da senha do wi-fi, o aviso: não temos serviço de esplanada. Eu penso na Esplanada dos Ministérios e na Gigi a dizer que ergueram Brasília no mesmo tempo em que ficou pronta a metade da estação de metrô de Arroios. Já me habituei a nunca chamar garçom de “moço”, mas de “desculpe”, “com licença” ou “por favor”. Fico a imaginar o cartão de cidadão: Desculpe de Sousa. Com licença Carvalho. Por Favor Ferreira dos Santos. Ontem sonhei que havia um aplicativo que fazia bolsonaristas ficarem verde fosforescentes no escuro.
Já hoje está tudo diferente e tudo igual. O coração é de cimento fresco. O amor eterno vive com os dias contados.
Keli Freitas (1983, Brasil) é criadora, dramaturga e actriz.
Graduada em Letras pela PUC-Rio e mestranda em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa.
Esta iniciativa resulta de uma parceria Coffeepaste / Prado. A Prado é uma estrutura financiada pela DGArtes / Governo de Portugal para o biénio 2020/2021.