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As palavras são invólucros para as coisas que não se dizem

Por

 

STATT MILLER
January 29, 2025

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As palavras são invólucros para as coisas que não se dizem

As palavras são invólucros da comunicação, que correspondem a certas definições e significados, símbolos e referentes. Contudo, coisas como o débito, a entoação, os silêncios, e o volume com que se fala, parecem ter a habilidade de transformar e preencher de forma diferente essas embalagens que são as palavras, que apenas aparentemente se encontram encerradas naquilo que significam. Assim, por arte do emissor, ou má vontade do receptor, as palavras podem significar uma coisa e o seu contrário, levando ao desafio de encontrar o momento em que se deu o erro da comunicação.


É este o jogo que a encenação de Carla Bolito traz à cena em TUDO A QUE SE CHAMA NADA, a partir de uma adaptação de dois textos (Por tudo e por nada e Aqui está ela) de Nathalie Sarraute, dramaturga russa da segunda metade do século XX.


Num lugar nunca esclarecido pelo texto, o cenário de Carlos Bártolo situa a acção da peça naquilo que aparenta ser uma galeria de arte, onde estão expostas duas telas: uma de frente para o público, e outra do seu avesso. O quadro de face virada para a plateia releva uma interpretação pictórica de uma casa, ao mesmo tempo que a obra da qual se vê apenas o reverso (apesar de ser perceptível que apresenta a mesma imagem da primeira tela), aponta para a materialidade do objecto, como que dizendo “isto é uma tela que foi pintada”, sem lirismos associados.


Tal como os quadros que, de frente e de verso, apresentam duas perspectivas de um mesmo elemento, também o discurso entre as quatro personagens que visitam a exposição jogam entre o domínio poético da fala para depois apontarem a materialidade e a literalidade das palavras. As temáticas das conversas que ali acontecem são variadas, desprovidas de contexto ou de linhas narrativas fechadas. Pouco se sabe das quatro figuras que se traçam a partir do dito e do não dito, cujos discursos podem comunicar o contrário daquilo que parecem querer dizer. A plasticidade da palavra é activada pelo uso dominado e domesticado da ironia, do sarcasmo, do silêncio, da repetição ou da respiração presentes na emissão e tom dos débitos de cada interveniente.


O verdadeiro sentido e significado das palavras só é esclarecido e accionado mediante o discurso directo, que veste as palavras de segundas intenções e esclarecimentos, não resistindo ao poder da elocução dirigida pelas metáforas ou emoções, que não são necessariamente associadas ao real significado daquilo que as palavras querem dizer. Assim, o conflito entre as personagens é gerido pela comicidade do atrito, na tentativa de compreender se um elogio é, honestamente, um elogio, ou é um episódio de escárnio e complacência, ou se uma resposta é uma resposta honesta, ou se está pejada de segundas intenções.


O trabalho apurado das interpretações de Álvaro Correia, Anabela Brígida, João Cabral, Marcello Urgeghe amarfanha as palavras nas suas infinitas faces, para depois as fazer voltar à forma que melhor vestem, um pouco como os figurinos que usam, assinados por Ricardo Preto. Acompanha-se a bom ritmo os perfis ensaiados em cada dramatículo, que versam sobre a versatilidade da palavra e dos seus mecanismos, presentes em vários os textos de Sarraute.


TUDO A QUE SE CHAMA NADA é um exercício cénico divertido e profundo, que opera sobre o poder da comunicação. Com uma dramaturgia gramatical apurada, o discurso cénico encerra com um fade-out sobre o último reduto da comunicação não verbal, os olhos (esses espelhos da alma) vestidos por óculos, objecto essencial a quem não vê bem as palavras. Mesmo que lançadas no abstracto, em qualquer corriqueira conversa, ver bem as palavras ajuda no sucesso da comunicação, quando o seu entendimento depende de uma expressão, ou de um olhar, que acompanha o que é dito, e que serve de chave para decifrar toda a conversa. Num espectáculo que se ensaia sobre as potencialidades do erro, e da falha da super, sobre e sub-interpretação, o calcanhar de Aquiles é, neste contexto, apenas mais uma expressão a centrifugar, que se pode aplicar a tudo, sem de facto se aplicar a nada.


[Tudo a que se chama nada]

Uma adaptação de Por tudo e por nada e Aqui está ela de Nathalie Sarraute. Traduções: Ricardo Marques e Carla Bolito. Encenação: Carla Bolito. Elenco: Álvaro Correia, Anabela Brígida, João Cabral, Marcello Urgeghe. Desenho de luz: Daniel Worm. Figurinos: Ricardo Preto. Cenografia: Carlos Bártolo. Efeito sonoro: Rui Dâmaso. Cabelos: Ulisses Hair Station. Produção Executiva: Lorena Pirro. Apoio SPA -  Fundo Cultural. Coprodução: Estado Zero e São Luiz Teatro Municipal.


16 de Janeiro 2024, Sala Mário Viegas, Teatro São Luiz Teatro Municipal


Este texto está também publicado em www.ocalcanhardeaquiles.wordpress.com

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