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Catarina Branco: A arte como voz para a luta contra a violência de género

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COFFEEPASTE
December 10, 2024

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Catarina Branco: A arte como voz para a luta contra a violência de género

Nesta conversa com Catarina Branco, exploramos o universo criativo de uma artista multifacetada e profundamente comprometida com questões sociais. Catarina, com um percurso que transita pela arquitetura, dança e coreografia, apresenta-nos sua visão única sobre o corpo como espaço político e meio de expressão. A sua mais recente criação, não é amor, aborda de forma sensível e visceral a violência de género e doméstica, uma temática urgente e que exige reflexão coletiva.


Nesta entrevista, Catarina revela as raízes do seu trabalho artístico, os desafios emocionais e éticos enfrentados durante o processo de criação e a importância do diálogo colaborativo na construção de uma narrativa coreográfica poderosa. Partilhando os detalhes possíveis sobre as sessões em casas de abrigo e a interação com as vítimas, Catarina reforça a responsabilidade do artista em criar obras que vão além da estética e promovem mudanças sociais.


Com uma mensagem clara e impactante, não é amor não busca resolver o problema, mas sim sensibilizar, dialogar e quebrar o silêncio que muitas vezes perpetua a violência. Catarina convida-nos a refletir sobre o papel da arte na sociedade e a urgência de combater a violência de género de forma estruturada e empática.


Fala-nos um pouco do teu percurso artístico.

Tive a sorte e o privilégio de ser uma criança exposta às artes. Aos seis anos, os meus pais inscreveram-me em aulas de piano, o que me fez com que eu tivesse contacto com a música até conhecer-me adulta. Sempre fui muito incentivada a escrever, a ler, a desenhar, a pintar. Essas eram as minhas “brincadeiras”. Acho que esse privilégio trouxe-me muita liberdade e essa liberdade permitiu-me estudar sem ansiedades financeiras. Formei-me em arquitectura, trabalhei na área da reabilitação urbana, sobretudo no Porto, a minha cidade, que hoje me é estrangeira, fruto do anarco-capitalismo e da selvajaria turística em que se tornou. Nesse período de tempo em que trabalhei com reabilitação urbana descobri a dança e percebi que era através da arquitectura dos corpos que melhor me expressava. Diz-se que a arquitectura não tem três dimensões, mas sim quatro. A quarta dimensão é o tempo e é isso que tento transpor, hoje, para a coreografia. Gosto de pensar nas dimensões espaciais e temporais do(s) corpo(s) e isto inclui, inevitavelmente, todas as simbologias que um corpo carrega e toda a sua herança histórica. É impossível para mim negar que um corpo é político. Existir é político. E é nesse universo que assenta o meu trabalho enquanto coreógrafa.

 

O que te inspirou a criar não é amor e como transformaste um tema tão complexo como a violência de género e doméstica em linguagem corporal?

Todos nós conhecemos alguém que já sofreu violência de género. Quem negar isto, está a mentir ou vive alienado do seu contexto. A violência contra as mulheres está escancarada nas sociedades contemporâneas. Pode ser violência física, social ou psicológica. Acontece em contexto familiar, conjugal, mas também de trabalho. Acontece com mulheres cis adultas, raparigas, meninas e as que mais sofrem são as mulheres imigrantes e as mulheres trans. E isto são estatísticas, é irrefutável. Em 2023, 76,6% das vítimas eram mulheres. Enquanto sociedade precisamos de compreender que ignorar o problema é compactuar e é fazer parte dele.

 

Talvez porque sou ansiosa, tendo a partir os problemas em várias etapas. Ajuda-me a clarificar para mim que abordagem devo ter em cada um deles. E assim foi o processo de criação desta peça. Quis trabalhar a relação entre paixão e violência, refletindo sobre a linha ténue que as separa. E trabalhei sobre esta ideia partindo do geral para o particular, ou seja, começou por ser meramente um conceito, simples, pouco palpável e fui lhe acrescentando camadas de complexidade à medida que a criação ia avançando. Todo este processo foi colaborativo com a Bárbara e o Deivid — os intérpretes que dão vida a esta peça — e, por isso, o diálogo aberto foi uma constante na nossa dinâmica relacional e criativa. Desde o primeiro dia, adotamos uma metodologia de radical feedback, que acredito ter contribuído para uma criação madura e responsável, não só com a temática, mas também com todos os elementos da equipa. Juntos construímos uma partitura coreográfica que se organiza em seis etapas, com ações, movimentos e estados emocionais específicos para cada uma destas etapas. Aqui foi importante trabalhar o gesto, já que um mesmo gesto pode significar várias coisas e a conjugação das variáveis em torno do gesto permitem diferentes interpretações, dependendo das sensibilidades individuais e das subtilezas que cada etapa pode oferecer. Juntamente com esta partitura coreográfica há uma narrativa que definimos, ou seja, há uma história que queremos contar, então sabemos que há um destino concreto nesta nossa viagem. Sempre que apresentamos esta peça, sabemos que há um conjunto de regras estabelecido por nós, mas há também a possibilidade de as quebrar e de surpreendermo-nos uns aos outros. Isto mantém a peça viva e interessante para nós. E acho que isso mantém a experiência imersiva para os intérpretes e, consequentemente, para os públicos.

 

As vítimas não escolhem ser vítimas. Muitas vezes as vítimas não se apercebem logo do problema, vão sendo engolidas pelas subtilezas da violência. Em não é amor somos engolidos do mesmo modo. Ou assim tem sido o feedback que temos tido.

 

Como foi passar para cena uma temática tão sensível?

Eu e a Bárbara somos mulheres, então esta peça vai-nos mesmo ao osso. O Deivid também tem aqui um desafio emocional e psicológico gigante, já que ele e a Bárbara são namorados. Além disso, sem querer entrar na intimidade de cada um, todos temos alguma proximidade com histórias de violência de algum tipo. Lembro-me de na estreia ter chorado com o que estava a ver e, recentemente numa outra apresentação, quando olhei para o técnico de luz, ele estava lavado em lágrimas. Mexe com cada um de nós de forma diferente e não há um dia igual a outro. Foi um desafio grande do ponto de vista psicológico para toda a equipa, daí ter sido tão importante o diálogo aberto durante a criação e o constante check emocional que tínhamos uns com os outros. Talvez isto não seja consensual (talvez seja pouco profissional), mas neste projeto as pessoas estiveram e continuam a estar acima da peça. Acho que isso também é responsável por termos criado uma amizade bonita entre todos.

 

Como é que outras disciplinas artísticas, como a escrita e a fotografia, influenciaram o desenvolvimento desta criação?

Apesar de habitualmente usar a fotografia como gerador de partitura coreográfica, concretamente neste projeto não recorremos ao uso da fotografia. Isto porque como trabalhamos numa casa de abrigo seria impensável fazer registos de qualquer espécie, por sigilo e proteção das vítimas. No entanto, a escrita esteve sempre presente. Tanto nas casas de abrigo, quanto no estúdio. Além da escrita, usamos o desenho para nos ajudar a definir o universo narrativo da peça, o que contribuiu para o finalizar da partitura coreográfica.

 

Qual é a principal mensagem que pretendes transmitir com este espetáculo?

Não tenho a audácia de pensar que um espetáculo resolve o problema da violência de género em Portugal e no mundo. Mas acho que o primeiro passo para resolver um problema é reconhecê-lo, então é isso ao que nos propusemos desde início: sensibilizar as pessoas para o problema, retratando-o de forma sincera e crua. Propomos deixar de aceitar que “entre homem e mulher não se mete a colher”, deixar de compactuar.

 

A nossa mensagem é clara:

Já morreram 25 mulheres vítimas de violência em 2024, não é amor.

E agora queremos espalhar a palavra.

 

Que tipo de reações ou reflexões tens obtido dos espectadores?

Já tivemos diferentes reações, mas podemos afirmar que não sentimos o público indiferente face ao que viu. No Quartel das Artes, por exemplo, tivemos uma sessão escolar com jovens entre os 15 e os 18 anos e foi impressionante vê-los a aplaudir de pé. De modo geral, temos visto um público que sai da sala inquieto e desconfortável. Algumas pessoas vêm ao nosso encontro para nos dizer que a peça é impactante. Descrevem-na como sendo essencial, atual e pertinente. Algumas pessoas agradecem-nos a coragem, admitem que é urgente apresentarmos em mais espaços. É muito gratificante ver que as pessoas são impactadas. Também nos agrada ver uma plateia variada, com pessoas géneros, idades e contextos diferentes. Mostra-nos que existe vontade em pensar sobre o problema da violência. Também já tivemos feedback positivo de diretores artísticos que assistiram ao espetáculo e que querem programar o não é amor nos seus teatros.

 

Como vês o papel da arte na sensibilização e combate à violência de género?

Eu acredito que a arte tem o potencial de gerar pensamento e de abrir diálogo. Vejo a arte como política, e isso para mim torna-se mais evidente no caso particular da dança, porque a leitura que fazemos dum determinado corpo é política. Não acho que todos tenhamos de pensar a arte através duma lente política, mas acho que tudo o que somos, o que comemos, como dormimos, com quem dormimos, o que fazemos é política. E, por isso, mesmo que determinada peça não tenha uma origem ou um pensamento político, corre o risco de ser percecionada de forma política. Aliado a este pensamento e apesar do nosso sector ser bastante precário e a democratização da arte estar em curso — do ponto de vista financeiro mas também social, político e estético — a arte é um lugar democrático. Acredito que a arte pode ser um caminho de aproximação entre pessoas. Hoje em dia os teatros ainda são lugares de poder — ou não houvesse um palco e uma plateia para reforçar a crença de algumas pessoas de que “o teatro não é para mim” ou “eu não percebo nada” — como se fosse precisa uma tradução para o sentir. Ainda há uma distância entre artistas e públicos. Essa distância é diminuída quando falamos com transversalidade sobre aquilo que é relacionável, sobre o que todos sentimos e reconhecemos ao nosso redor.  Diminuímos essa distância quando saímos da arrogância de saber tudo e procuramos estabelecer uma comunicação com o outro. É aí que a arte pode contribuir para a sensibilização e combate às violências.

 

As estatísticas de mulheres vítimas de violência doméstica é assustadora. O que pode ser feito para mitigar esta realidade?

O primeiro passo para resolver um problema é reconhecê-lo. Temos de reconhecer que existe uma epidemia de violência de género. Os nossos governos têm de reconhecê-lo. Com esta peça tentamos alertar para o problema, não só para que mais pessoas estejam atentas às suas amigas, às suas vizinhas, às suas colegas de trabalho, mas também para que possamos ser mais pessoas a exigir medidas concretas aos governos. A violência doméstica ser um crime público é uma vitória, porque qualquer pessoa pode denunciar, mas as medidas de proteção das vítimas continuam a ser insuficientes.

 

Como foi trabalhar em parceria com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) e a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)?

A CIG foi a nossa ponte para perceber quais as associações em Portugal com mais alcance e que mais meios têm para apoiar as mulheres em situação de violência. Acabamos por estabelecer uma parceria com a APAV, que nos permitiu conhecer de forma próxima a realidade das casas de abrigo.


Podes falar um pouco sobre as sessões realizadas em casas de abrigo e o impacto que essas experiências tiveram no espetáculo?

Levamos a cabo sessões de laboratório criativo numa casa de abrigo (cuja localização não podemos revelar), onde promovemos a experimentação artística, através de métodos e processos de criação coreográfica e escrita. Desde o início, o nosso intuito foi contribuir para o bem-estar e confiança destas mulheres, que se veem isoladas e afastadas das suas vidas. A Maria, pessoa responsável por articular as sessões na casa de abrigo, reconheceu a importância deste projeto na vida das mulheres que participaram e que o mesmo abre portas a mais atividades dedicadas às mulheres (e, por vezes, crianças), que vivem nas casas de abrigo.

 

Aquilo que observamos é que a vítima é afastada do seu contexto e o agressor continua a sua vida com normalidade, até que se prove agressor. As vítimas são deslocadas para uma casa de abrigo, longe da sua casa, da sua família, dos seus amigos. Para que possam sobreviver, as suas vidas são interrompidas. E isso é, também, uma violência. É por isto que consideramos urgente as estruturas de apoio a vítimas serem repensadas e isso só é possível com um governo consciente e responsável.

 

O que trouxemos das casas de abrigo para a criação foi a compreensão de que a violência não é necessariamente óbvia a princípio. A violência pode ser subtil e existem diferentes formas de opressão. Muita da violência que acontece sem que reparemos é estrutural, por ter sido normalizado pelo ambiente em que vivemos. Todos já assistimos ao retrato romantizado de relações tóxicas num qualquer blockbuster de hollywood. Com as sessões nas casas de abrigo, compreendemos que não existe um perfil específico de “vítima”. Sabemos que na sua maioria são mulheres, mas não existe idade, estatuto ou contexto geográfico que defina um perfil. Algumas vezes a vítima estabelece uma dependência emocional com o agressor, o que torna mais fácil ser manipulada e subjugada a diferentes formas de opressão. A condição socioeconómica da vítima tem um papel de extrema importância na sua emancipação, mas não é o único fator. São muitas as variáveis dentro do tema de violência de género e é duma complexidade extrema, que merece reflexão por parte de todos.

 

Como concilias a responsabilidade de criar um espetáculo artístico com a necessidade de respeitar as experiências das vítimas?

Como mencionei antes, as vivências das vítimas não foram expostas. O nosso objetivo com as sessões foi levar-lhes algo e não de lhes retirar algo. É lógico que partilharam aspetos das suas vidas connosco, porque fomos construindo uma relação de proximidade, então foi tudo com naturalidade. Mas nunca foi colocado o foco nas vivências de violência, o que não quer dizer que não tenham mencionado uma situação ou outra, mas não estávamos ali para as relembrar disso. Estávamos ali para as empoderar. E, nesse sentido, recebemos muito. O que retratamos em não é amor não é a história particular de ninguém, senão todas as histórias que todos sabemos. É o elefante na sala.

 

Como foi a colaboração com Bárbara Hoerlle Vasconcelos e Deivid da Rosa Correia na interpretação da peça?

Conheci a Bárbara e o Deivid numa audição para uma peça de teatro. Isto, à partida, foi uma enorme coincidência, porque 1. não costumo participar em audições, mas tinha curiosidade com o método de trabalho do encenador em questão, 2. ficamos os três no turno da manhã. Trocamos poucas palavras, mas a minha energia bateu com a deles. Sem os conhecer, convidei-os para um café para formalizar o convite para esta peça. Honestamente, foi a melhor equipa com quem alguma vez trabalhei. Todos os dias agradeço os acasos que nos trouxeram até aqui. Somos os três muito diferentes. Temos visões artísticas e métodos de criação distintos, então foi um desafio e um jogo de cedências para que encontrássemos o caminho que nos fizesse mais sentido. Acho que resultou, porque temos valores humanos iguais e porque tínhamos o mesmo objetivo. Resultou, porque aproximamos perspetivas e vontades artísticas. Foi um processo íntimo, conhecemos bem os limites uns dos outros, há muito respeito e isso é bonito. A empatia artística construiu-se, porque todos quisemos que assim fosse. E acho que isso espelha-se na peça.

 

Por onde ainda vai viajar o espectáculo?

Já apresentamos no Centro Cultural Raiano (Idanha-a-Nova), na Casa da Cultura de Seia, no Quartel das Artes (Oliveira do Bairro) e no CAE em Sever do Vouga. Temos datas marcadas no Cine-Teatro de Pombal e no Centro Cultural de Lagos no primeiro trimestre de 2025.

 

Almejamos apresentar na nossa cidade, o Porto. Queremos ir a mais teatros em território nacional e Europeu e estamos a trilhar caminho para ir ao Brasil (um país igualmente assustador no que toca a números de violência doméstica).

 

Como é que este projeto impactou a tua visão sobre violência de género e o papel do artista na sociedade?

Ainda não tenho distância suficiente para perceber o verdadeiro impacto que este projeto teve na minha visão sobre o tema. É algo que ainda está a “cozinhar” dentro de mim. A peça está viva, então ainda tenho muito a processar. Temos percebido que o processo de criação é apenas o início e que a apresentação não é o fim, nem o “produto” reduzido. É mesmo um começo para todos nós, até mesmo na reflexão doutros tipos de violência. O impacto claro que, para já, teve na minha visão é de que acho que é ainda mais urgente falar sobre isto. Não tenho ilusões que uma peça sobre violência vá resolver o problema, mas acho que vendo a arte como um ofício, tenho esse papel e essa responsabilidade.

 

Existe alguma história ou experiência específica deste processo que te tenha marcado particularmente?

Houve uma história que me marcou muito, mas que não posso partilhar, por uma questão de sigilo. O que posso dizer é que, desde que começamos o processo de criação, várias foram as histórias que vieram ao nosso encontro, sem que procurássemos. Na minha memória, as histórias atropelam-se, por serem tantas. Acredito até que já tivemos mulheres em situações de violência a assistir ao espetáculo.

 

A violência doméstica aumentou a partir de 2020 e precisamos de encarar o problema de frente, com um discurso sério, estruturado e responsável.


Foto: Nuno Mina

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