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Das poucas coisas que podemos afirmar por unanimidade neste país é que a verdadeira maravilha da cidade do Porto são as pessoas. Não são as francesinhas, não é a Ribeira, muito menos os Clérigos, mas sim as pessoas. Para qualquer colecionador em busca das peças mais raras e irrepetíveis, é impossível ignorar a vida que é dada por quem lá vive. O senhor “Ramos Indiano” foi uma dessas maravilhas, com quem a Inês Campos e o Vahan Kerovpyan tiveram a sorte de se cruzar. Ramos Indiano é um homem português apaixonado por Bollywood. Coleciona cartazes, fotografias, músicas e sons vindos do oriente, que de alguma forma lhe tocam mais do que qualquer outra coisa e isso para mim é profundamente fascinante. Tenho que admitir que me apaixono facilmente por gente que se permite encantar por qualquer coisa, seja ela o que for, e que se deixa levar por isso. Em certas fases da minha vida gosto de pensar que o mundo precisa de mais tontos apaixonados. Contudo, quero deixar em nota que, por questões meramente conveniente para mim, neste texto vou romantizar a ideia de paixão. Quero pensar nela apenas durante a fase de encantamento e deixar para trás qualquer dissertação longa e complexa acerca do assunto. Falar de paixão é um território abundante, mas deixemo-nos estar pela superfície, por agora. O olhar infantil e ingénuo é aquele que faz nascer as histórias e esse primeiro encontro com as coisas que nos tocam consegue dizer-nos bastante mais do que aquilo que antevíamos, porque existe espaço para elas existirem, ou até mesmo, esse espaço é construído de forma involuntária. O grito de espontaneidade que ecoa no ar liberta fortes sentimentos que nos permitem olhar, tocar, ouvir, cheirar e saborear sem medo de errar. É uma forma bonita de liberdade.
O homem que se apaixonou por Bollywood serviu de ponto de partida para a criação e desenvolvimento da peça Frente-a-Frente, estreada a 15 de novembro, no Espaço de Blackbox, no festival ET Fest em Montemor-o-Novo. Este mote introduziu-nos a uma peça que “pega em culturas do mundo, apropria-se da potência delas com tambores, voz e corpo e volta a torná-las prática popular”. Quando cheguei e sentei-me para assistir à estreia senti-me logo criança. Senti que estava a ver algo que imediatamente não entendia e não encontrava grandes significados, mas que ainda assim soltou de mim tontos sorrisos espontâneos. Claramente o meu corpo respondeu logo, desde início, aos estímulos mais fáceis com que também nos cruzamos no dia a dia, desde cores, objetos e sons. O cenário vestiu-se de laranja. Uma cor forte, que despoleta sentimos intensos de ódio ou de amor. Assumidamente não é um tom neutro e essa jogada, do uso de uma cor musculada de caráter, à partida não nos aborrece, pelo contrário, berra diretamente na nossa cara “olha para mim”. E, ao olhar, observamos discretas excentricidades, que à partida já assumimos como vão ser usadas, algo que não fugiu muito da expectativa. Os instrumentos musicais dispostos em palco, a voz da Inês, a voz do Vahan, um pratic cello de um lado, um tambor e cavaquinho do outro, foram usados numa dinâmica leve e divertida, que deram espaço às sensações. A repetição e mimetização de partituras, mais ou menos reconhecíveis, ao longo dos 50 minutos de espetáculo, definiu o sentir de uma forma solta e desprendida, não procurando o peso do mundo para colocar em palco. Às vezes é só isso que pedimos a uma peça: algo honesto e consciencioso dessa mesma honestidade.
Do Porto até à Arménia, caminhando até à Índia e navegando sem paragem de norte a sul, este e oeste, existe uma enorme vontade de explorar tudo e especificar nada. Aqui o espaço de criação é tão fértil que não existem paragens únicas obrigatórias a limitarem a recepção ao que estamos a ver e a ouvir. Aqui, o devorar dos primeiros momentos do mundo transita para os pés, as mãos e a boca de quem assiste, que não se deixa indiferente a este encontro com a vida, na sua forma mais espontânea, ainda que muito bem estudada.
Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 15 e 16 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de frente-a-frente, de Inês Campos & Vahan Kerovpyan, e Kabeça Orí, de Aoaní & Joyce Souza / Associação Orí.
Foto por Bruno Simão
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