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Inventar a Noite

Por

 

Ivo Saraiva e Silva
August 26, 2024

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Inventar a Noite

“O Frágil do Manel foi, para mim, uma espécie de segunda adolescência, necessariamente tardia, onde aprendi muito e ri pela noite fora. A boémia possível, após a revolução. Tenho a certeza de que, lá em cima, o Manel já anda à cata de um espaço, para nos impressionar de novo. É que ao Frágil sucedeu-se o Lux e à pequena loja de antiguidades e design tantos outros projetos se somaram... O seu gosto, a sua generosidade e a sua discreta amizade nunca tiveram limites, e muito menos os que a morte procura impor.” (RAMADA CURTO, Diogo, Um País em Bicos de Pés: Escritores, Artistas e Movimentos Culturais, Lisboa: Edições 70, 2022)

 

Há a estranha noção de que a noite e os seus contextos boémios são dispensáveis e desfavoráveis. Talvez porque seja associada ao perigo, há uma certa tendência para desprezar a vida noturna. É no entendimento de que a boémia é basilar para o exercício da democracia que vemos que, afinal, o perigo é não problematizar a noite.


A circunstância da diversão, da festa e da boémia sempre esteve cúmplice de uma ideia de mudança, quer nas narrativas quer nos seus intervenientes. O próprio teatro – zona de atuação que me diz respeito – começa com uma grande piela, nos rituais dionisíacos feitos a Deus. Igualmente, os casos mais proeminentes da escrita dramática soletram festas que transformam:  o namorico mais célebre e sangrento de todos começa com uma festa – Romeu e Julieta (William Shakespeare) conhecem-se num baile de máscaras e ficam extasiados um com o outro, indo até às últimas consequências; um outro baile de máscaras, o da Casa de Bonecas (Henrik Ibsen), revela-se fulcral para Nora decidir libertar-se da sua opressão, da casa e da família, e bater a porta rumo à própria liberdade; e, na noite de São João, a menina Júlia (August Strindberg) descobre o seu desejo ardente à flor da pele e envolve-se com João. Entre outras, também uma das séries contemporâneas de maior sucesso criada por Carlos Montero e Darío Madrona, Elite (2018-2024), tratou esta natureza transformadora da noite e da festa e da diversão a seu proveito para criar drama, intensificar a tensão e causar sensações.


Nos anos 20, os speakeasies foram cruciais para o desenvolvimento das novas tendências, das modas, da evolução da música e da ampliação das intelectualidades. Foi na noite da História que o ser humano pensou sobre si e brindou ao futuro, muitas vezes bebeu ao passado (mais que a conta, talvez), mas sempre tentou que o presente, aquele momento noturno, o salvasse da sombra perseverante da morte. É como se o segredo da existência de uma pessoa e a sua transformação estivesse bem guardado numa noite escura, ou a reluzir ao luar.


Ora bem, e quantos segredos escondia Manel Reis e o seu Frágil? Não têm conta, pois lá está. Mas tudo começa aí, na noite, assim, com um segredo. Inventar a noite foi o truque subtil de Manel Reis, e devolver uma comunidade mais inclusiva a Lisboa foi a melhor prenda que até hoje dedicou às pessoas. O grande segredo foi ritualizar a cidade e oferecer-lhe alternativas que dessem conta de um maior número de liberdades e de formatos de exibição e relacionamento, de existência. Diogo Ramada Curto é um dos muitos felizardos que sorveram a “noite do Manel” e descreve uma comunidade sem amarras, que se celebrava a si e ao semelhante, que festejava a fúria de viver em Um País em Bicos de Pés: Escritores, Artistas e Movimentos Culturais: “Lá dentro, noite fora, os do costume eram Teresa Coelho, José Ribeiro da Fonte e Al Berto. Partiram todos, há muito, pois os deuses chamaram-nos cedo, para preparar a chegada do Manel... As mais sofisticadas começavam pelas artistas plásticas, com Joana Rosa primeiro e Berta Erlich depois. As manas Medeiros representavam a abertura de espírito às artes cénicas, que o Liceu Francês soubera criar. A Cristina e o Miguel Dias Neves eram outros irmãos que por lá andavam. Mais a Sofia e a Inês Leite, que conheci através da Fernanda, natural de Fátima, que se fez estilista no Bairro e morreu cedo. Mas havia muito mais gente do cinema, com o Joaquim Pinto à cabeça, e muitos outros a começar pela chusma dos pseudo-guionistas franceses. Da música, o maior era o Pedro Ayres de Magalhães e o seu grupo, mas de vez em quando lá passava o Rui Reininho. Da ESBAL, o mais imponente dos Pedros era o Cabrita, a fumar charuto, mas não fiquem esquecidos todos os outros, do Casqueiro ao Calapez. Manuel Costa Cabral, da ARCO, aparecia sobretudo quando havia festas. Havia também a gente da publicidade e das artes gráficas, de que não esqueço o Luís Miguel Castro, o Álvaro, filho do António Valdemar, e a Paula Madeira Rodrigues. Dos jornais, fico-me pela referência às primas Isabel Salema e Ana Soromenho. Em trânsito de profissão, apareciam todas as noites a Manuela Parada Ramos e a Helena Amaral. Havia médicos como a Fernanda Labricha, matemáticos como o Jorge Orestes ou o João Amaral, e engenheiros agrónomos como o Pedro Salgueiro. Dos psicólogos, destaco um, vindo diretamente da Rive Gauche, o extravagante Jorge da Glória. Que não se esqueça a Princesa, nem a Engenheira, assim chamadas para abreviar, nem os grupos da outra banda, com as Caldo Knorr à cabeça, que tinham de sair cedo para apanhar o último barco. O Guy, da Embaixada de França, inventou a frase Se está mau aqui, está mau em todo o lado. Mas nós achávamos o contrário: se estava bom ali, estava bom em todo o lado, logo, não era preciso ir a mais lado nenhum. Por último, considere-se a legião dos arquitetos, para todos os gostos: Carlos Severo era o maior, Nuno Antunes, Bárbara Miguel, Manuel Bastos, Paulo Jalles, Teresa Valsassina, António Braga, Alberto Castro Nunes, etc.” (idem).


De facto, as comunidades que se foram criando em lugares como o Frágil de Manel Reis, na procura das suas individualidades e mecanismos de inclusão, são representativas de uma revolução pela festa e pela diversão, à época. Ao mesmo tempo, solidificaram os alicerces para uma maior democracia na atual vida noturna alternativa. Esta perceção faz entender que toda a noite é política, e toda a diversão está comprometida com o espetro da mudança. Isso quer dizer que toda a festa que existe e se proporciona é representativa de uma comunidade (e a perpetua) que a pessoa responsável dessa mesma festividade defende. Entender que ladies night ou guestlist ou consumo mínimo não é político é subestimar a democracia.


Tal como as famílias, as comunidades são construídas a partir dos seus rituais. A festa não deixa de ser um desses ritos. A este propósito, Byung-Chul Han alerta para o desaparecimento deles perante as armadilhas da sociedade do cansaço e da autoexploração. Han mostra como as festas parecem ter-se modificado perante os perigos da atualidade: “As festas atuais ou os festivais pouco têm que ver com aquele tempo sublime. São o objeto duma gestão de eventos. O evento como versão consumista do festival mostra uma estrutura temporal totalmente distinta. O termo “evento” remonta ao latim eventos, que significa “sobrevir”, “vir subitamente”. A sua temporalidade é a eventualidade. É aleatória, arbitrária e não vinculativa. Porém, os rituais e as festas são tudo menos eventuais e não vinculativos. A eventualidade é a temporalidade da atual sociedade dos eventos. Opõe-se ao caráter aglutinador e vinculante da festa. Ao contrário da festa, os eventos tão-pouco criam uma comunidade. Os festivais são eventos de massas. As massas não constituem nenhuma comunidade.” (HAN, Byung-Chul, Do Desaparecimento dos Rituais, trad. Carlos Leite, Lisboa: Relógio D’Água, 2020, p.46).


Com a falta de sentido de ritual parece perder-se o sentido de uma comunidade. Isto acontece porque, sem os rituais, releva-se apenas uma importância sobrestimada da vida pelo trabalho (essa coisa tão antiga) e, sem uma comunidade, as pessoas encerram-se na sua individualidade egoísta. Peter Castro, dj-artista e, entre outras coisas, príncipe das noites do futuro, alerta para um excesso que causa apatia e impossibilidade de ação: “As pessoas estão exaustas. A população não tem tempo para a cidadania. Não há tempo para ser cidadão.” (PALCO ASTRAL: Peter Castro – Ep. 12. Planeta Sérgio. Lisboa: 19.08.2024. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/6KWpAPKbyQyVBAEAtQB7Az?si=a93o3gXKR5u3nwLghYD-WA).


O egoísmo individual de uma pessoa combinado com a sua autoexploração leva-a a atribuir um sentido desfavorável ao tempo livre, como se descansar fosse desperdiçar tempo: “O tempo livre é para muitas pessoas um tempo vazio, um horror vacui. A crescente pressão para o desempenho nem sequer torna possível uma pausa que permita descansar. Por isso muitas pessoas adoecem justamente durante o tempo livre. Esta doença tem já um nome: leisure sickness. O tempo livre revela-se aqui uma angustiante forma vazia de trabalho.” (HAN, Byung-Chul, idem, pp.46 e 47).


O tempo livre é desvalorizado perante a ininterrupção do trabalho contemporâneo visto como excesso de produtividade, gerado por mecanismos de coação por parte de um sistema aonde os indivíduos se inserem.


Estas e estes tendem a deixar de sentir necessidade pela festa e pelo divertimento, rituais imprescindíveis ao ser. É aí que se fragilizam as relações e se embrutecem espíritos, dificultando que a melhor versão de nós mesmos aconteça, porque ficamos carentes de uma comunidade: “Na sociedade ritual, a vida coletiva, a festa, como observa Durkheim, assume por vezes uma forma excessiva, uma espécie de fenesi, quando o período de trabalho, ou seja, período de dispersão, é demasiado longo e a própria dispersão é demasiado extrema. A uma festa segue-se outra festa. Hoje é o trabalho que assume uma forma frenética sem que se sinta a necessidade de festa e congregação. Por isso a coação para produzir conduz à desintegração da comunidade.” (ibidem, p.47).


É evidente que se torna urgente criar uma necessidade de festa nas sociedades atuais e que todos nos responsabilizemos por ela. Inventar a noite é responsabilizarmo-nos por um futuro. Problematizar a diversão é inventar.


Maria Mello Giraldes dedica palavras a esse tempo de reflexão e de deslumbramento que a noite proporciona: “Finalmente, o espaço do deslumbramento. Respirei o fogo da noite, o fogo que consome e transfigura. Toda a arte antiga passou e deixei-a passar. Na desordem primitiva me encontrei. É tempo de amar e o amor é ainda ser sempre. Experimentei a noite e de novo uma febre fria me assalta. Toda a loucura se passeia na loucura de um festim. Que dizer da loucura? Tanto que me vou esquecendo, será como a fotografia que nunca se revelou, o centro de todo o poder ou ainda o outro centro da ausência de todo o poder. Há amor na cidade da minha noite. Por entre as ruas, o talento dos sinais dizendo. Desci aquele momento involuntário que transpira na memória. Levava comigo um talismã recordando-me a existência. A noite e a cidade desenfaixam a matéria. Eu, matéria que toca a terra e se evapora do esquecimento, escrevo para esquecer a importância de existir desordenadamente. Preciso escolher a forma, a ilusão ou nada.” (MELLO GIRALDES, Maria, Obra Reunida, Tigre de Papel, 2024, p.226).


O exemplo de Manel Reis é a odisseia de um homem que fez de tudo o que estava ao seu alcance; a nós, que somos direta e indiretamente seus herdeiros, deixou-nos o futuro. Inventar a noite é responsabilizarmo-nos por pensar numa sociedade plena e para todos. Ainda assim, inventar a noite não é fazer o mesmo que o Manel fez, mas ultrapassá-lo, como se faz com os mestres.

É preciso inventar a noite. E ter jeito para o fazer. É preciso ter jeito para um futuro festivo.


Fotografia de Under the Effect Party, performance dos SillySeason no Lux-Frágil, a 9 de Novembro de 2013, da autoria de Nuno Alexandre Ferreira e João Pedro Vale.

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