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João Garcia Miguel tem trazido à cena diversas temáticas importantes e sensíveis. Shakespeare, Genet ou Peter Handke foram alguns dos nomes que encenou. Estreia dia 2 de Abril "Três parábolas da possessão", no Teatro Nacional D. Maria II. Conversámos com ele para saber mais sobre esta peça e sobre o seu trabalho.
Vais ter “Três parábolas da possessão” em cena no Teatro Nacional. Como surgiu este projecto?Este projecto surgiu na continuidade das relações de afinidade e filiação que tenho com um conjunto de criadores. Neste caso o Francisco Luís Parreira cujo modo de estar e de escrever são um estímulo criativo. Já tinha feito outra colaboração com ele em Lilith que apresentámos no São Luiz em 2012. Desta vez pedi-lhe um texto que permitisse aprofundar a nossa visão do mundo e das artes. Ele diz que eu sou um exaltado para fora e eu sinto que ele é um exaltado para o seu mundo interior. De certa forma somos os dois exaltados e vivemos na intensidade as injustiças e uma certa admiração e fascínio por uma religiosidade inexplicável.
O que procuras no teatro?Procuro acima de tudo aceder ao inconsciente através do uso e abuso de uma indisciplina física. Creio que o corpo e o acesso ao inconsciente, ao invisível, ao inexplicável, à recusa de aceitar viver num mundo desencantado e sem magia - o que me atira para uma subespécie, uma minoria que se impõe uma busca, uma procura e pesquisa de formas de vida e de morte. Esta procura através do teatro é também a constatação de que aquilo que procuro o teatro nunca poderá oferecer, porque o que se procura é essa força vital que existe do outro lado das coisas e que nos escapa permanentemente. Contudo, a arte é uma coisa que perdura para além do que fazemos e o teatro é uma arte que permite intervir no social e nas relações interpessoais de forma directa e profunda e isso é o que me interessa pessoalmente.
Que textos te atraem?Os textos que me atraem são os que carregam em si segredos e questões problemáticas. Matérias que desconheço e ou que não consigo perceber ou que o meu lado intelectual não descodifica. É nessa luta que é mais uma forma de intensidade e de aceso ao inconsciente que me deixo afectar e apaixonar.
Como classificarias o teu percurso?Não creio que tenha um percurso que possa definir para já. Penso que quando começámos estávamos perante um país em ruínas, éramos habitantes de um território sem nome e que precisava de artistas para renovar as imagens do corpo daqueles que aqui viviam. Éramos e ainda somos uma ideia velha e em fase terminal. Somos um corpo velho e mal cuidado, pouco exigente e sem capacidade de audácia. Perdemos o espirito de aventura. Esta é uma sensação geral que não se aplica quando se fala com as pessoas individualmente. O que temos feito é ir em busca desse entusiasmo, dessa alegria e força vital que as artes e os artistas sempre invocaram para si. Nesse sentido o meu percurso é feito de afectos e de descobertas de pessoas e pessoais. Quando falamos em percurso sinto de imediato um apelo para continuar o caminho, mais de olhar para trás.
Que caracteristica é para ti essencial num actor?O corpo generoso, capaz de ir buscar a criação de sentidos aos lugares mais inesperados, capaz de surpreender. Gosto de actores onde os eu dom natural para nos levar e encantar seja uma chama forte e intensa. gosto de actores que sejam mentalmente fortes, criativos, disponíveis. Gosto de actores que nos permitem aceder ao inconsciente e a uma força que é de partilha dos corpos.
De que maneira a tecnologia influencia a arte?Este é uma temática que me faz hesitar e ter sérias questões. Creio que a tecnologia é em si um apelo para o vazio. Só influencia a arte quando se torna uma opacidade capaz de produzir sombra. Quando introduz resistência e necessidade de pensar. É muito raro isso suceder. Porque o pensar precisa de espaço e de tempo e a tecnologia procura anular esse sobressalto, esse acidente que nos permite ter distância para criar. A tecnologia é um brinquedo e quando nos faz sonhar como uma criança aí tem alguns resquícios de possibilidades de influenciar a arte. A tecnologia apela para a vida e a sua suspensão dessa força vital que nos anima. A arte tende para o movimento contínuo e perpétuo que está do outro lado, do lado da morte. É a vida que suspende esse movimento vital e a tecnologia é uma simulação dessa suspensão ilusória.
Há publico em Portugal?Claro que há. Há público em todo o lado. E curioso, audaz, capaz de sonhar e de criar. O que não há é muitos programadores à altura do público. Há um conjunto de programadores superstars que acham que têm uma visão de mundos fantásticos e maravilhosos e que são uma espécie de educadores do povo e dos espectadores. O espectador é por norma ávido e gosta de ser desafiado se quem o fizer for humilde e corajoso, capaz de o respeitar e enfrentar em simultâneo. Agora também há uma ditadura económica que faz que só alguns tenham acesso à cultura das artes. Este é um factor histórico que as nossas elites sempre procuraram fazer perdurar para que a ignorância e as formas e personificações do poder se mantenham eternas.
Como avalias o actual momento do país a nivel cultural?Não creio que isso exista: um país cultural. Há pessoas ávidas e com necessidades diferentes e com capacidade de perceber o que lhes falta e o que é preciso ser feito para que as coisas vão sendo modificadas. Creio que há uma cultura do medo e da insuficiência que vai oferecendo migalhas e que rejeita a abertura e a possibilidade de serem dadas alternativas.
Que mais projectos tens para este ano?Este ano iremos fazer um Hamlet com o José Walenstein, o Miguel Borges e mais um ou dois actores que ainda não defini. Será uma coprodução da Cia. do Teatro_cie de Torres Vedras, do Centro Cultural de ílhavo e do Centro Cultural Vila Flor de Guimarães. Fará depois uma volta por cidades em Portugal, Angola e Brasil. O tema que me interessa no Hamlet é a loucura paranóica e obsessiva de uma sociedade cujo individualismo gerou forças colectivizadoras massivas castradoras que se transformaram num princípio de exterminação e extinção eufórica. Algo que depois decerto vai ser abandonado e deixado pelo caminho.
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