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Ọrọ. Osere. Ebó. Bori. Èsú. Adobá. Laroiê. Orum. Àiyé. O vocabulário se expande, sem tradução. Um vocabulário novo para falantes de português. A palavra iorubá no título do espetáculo Kabeça Orí, de Aoaní e Joyce Souza, descreve o recipiente que é capaz de processar os pensamentos. No sentido literal, é a cabeça física. Duas atrizes, uma percussionista, uma equipa composta maioritariamente por artistas e criadoras e criadores negras e negros, africanas ou afrodiaspóricas. Sabemos, com a filósofa e artista visual Denise Ferreira da Silva, que “o contexto colonial (jurídico e económico) foi e continua a ser grande parte responsável por assombrar todas as tentativas de delinear o sujeito desde o século XVI”. O coletivo de criadoras de Kabeça Orí busca outros delineamentos.
O espaço de Kabeça Orí é ocupado por materiais cénicos que lembram as peças do jogo chinês tangram em escala gigante. Pequenos ou grandes ambientes (reverberações de quartos de recolhimento/roncós, de terreiros/ilès e da rua/opopona) são delineados na cena e alterados diversas vezes pelas atrizes. Em uma mudança da trilha sonora de Xullaji, as duas performers, Aoaní e Joyce Souza, movimentam essas grandes peças, levantam-nas, configurando, talvez, figuras mitológicas, com suas cabeças-kabeças cobertas por máscaras-capacetes, artesanalmente confecionadas por cordas, a sugerir grandes cérebros. Memórias de imagens da visceralidade do cérebro podem ser vistas sobre as cabeças das performers, mimetizando os chamados lobos – como se pode ver em desenhos de livros de anatomia – separados em parietal, frontal, occipital, temporal, que na peça estão entrançados. A relação com o tempo toma forma solene, sublinhando sua duração, sem a velocidade executiva para nos contar uma narrativa. Escutamos aforismos, excertos de histórias, de biografias, trechos da História e de filosofias não hegemónicas.
Recebemos fragmentos, breves cenas que realizam aproximações da ideia de cabeça: máscara cerebral, cabeça fisiológica, cabeça mente, cabeça pedaço do corpo e separada dele, cabeça apartamento T2, cabeça casa desocupada para ser habitada pelo diabo, cabeça casa que levo na viagem, cabeça ativista, cabeça guia, cabeça historiadora, cabeça erguida, cabeça que pede descanso, kabeça Orí encostada e deitada no chão, em reverência.
O espetáculo soma os passos das duas performers, ainda que uma fale muito mais do que a outra. Pretende perturbar o esquecimento, sem levar ninguém a perder a cabeça, ainda que não queira facilitar a construção desse caminho para o público leigo. As performers labutam ininterruptamente nas composições espaciais, falam sobre lutas presentes e ancestrais, sobre a fuga como herança e morada. Pretendem nos educar para uma mudança de pensamento sobre questões discriminatórias do sistema de poder racista e colonizador.
O descanso surge, então, como um pedido. Pedido que possa responder à visível exaustão. Trata-se de um descanso que possa cuidar do esgotamento provocado tanto pelo excesso de trabalho (as ações físicas em si e as referências aos infindáveis dias de escravização somados a todas as suas analogias) quanto pelo peso que as performers carregam em cena. Duas trajetórias solitárias, em ações paralelas espelhadas, sem contato físico, à exceção de uma cena em que esbarram de costas, ironizando um encontro com o diabo.
Entre a cabeça fisiológica e a kabeça Orí, Orí é tecida como sinónimo de destino, de amparo interior, de apoio, de cuidado de si para si. Talvez resida aqui a opção pelas trajetórias a solo. Há uma insistência no tema da fragmentação das cabeças, e o tratamento, em tom informativo, é pouco experiencial. A vontade discursiva da peça, o desejo pela inseparabilidade, quando posta ao lado de afirmações acerca da fuga como nação e do trânsito como o lugar destinado a esses corpos, configura um problema estético para o espetáculo. A cena, ao privilegiar a impermanência nos corpos de Joyce Souza e Aoaní, faz com que aquilo que se manifesta como desejo ético não seja correspondido pelas suas soluções estéticas.
A cena trata como representação aquilo que permanece como desejo de experiência ritualizada. Não sabemos de que modo as performers se preparam, antes da chegada do público, como compõem o espaço, como se relacionam com cada objeto ou com suas roupas. Mas sabemos que o desejo de ritualização nos conta algo sobre a vontade de tratar a cena como experiência, como exacerbação da presença, como encontro. Nesse terreno, a pergunta que faço para a obra é sobre um desajuste. Esse desejo pela identificação na forma, no trabalho estrutural das performers, faz com que a obra perca sua busca por uma experiência radical de desobediência e ruptura, como inspira a pensadora brasileira Leda Maria Martins, em proposta presente como referência em Kabeça Orí. Não parece que somos convidadas e convidados para uma experiência inaugural dentro de um gesto ritual performativo. Nossa impressão desafiaria a obra a experienciar um detalhamento tal que permitisse levar as performers à amplificação da consciência, seguida pela tradução pública de seus desejos por uma ação performativa ritual, e, quiçá, a intensificação de uma inteireza coletiva dentro das trajetórias vistas. Mas pode ser que este seja, afinal, o desejo da obra: levar o espectador à posição de aprendiz e exacerbar nossas solidões. Sem descanso.
Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 15 e 16 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de frente-a-frente, de Inês Campos & Vahan Kerovpyan, e Kabeça Orí, de Aoaní & Joyce Souza / Associação Orí.
Foto por Joniricos
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