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Lembra-te dos meus pecados: Pau Masaló reinventa "Hamlet" entre o absurdo e a improvisação

Por

 

COFFEEPASTE / Pedro Mendes
March 17, 2025

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Lembra-te dos meus pecados: Pau Masaló reinventa "Hamlet" entre o absurdo e a improvisação

A adaptação de "Hamlet" por Pau Masaló é uma reinvenção provocadora e irónica do clássico de Shakespeare. Inicialmente concebida como um talent show intergeracional, a proposta evoluiu para uma experiência teatral que combina teatro popular, absurdo e cinema de zombies, questionando o cânone teatral ocidental.


A montagem explora Hamlet como um ser em limbo entre a ação e a inércia, tal como um zombie. A improvisação e a interação com o público são centrais, tornando cada apresentação única.


"Lembra-te dos meus pecados" não pretende fornecer respostas, mas provocar reflexão sobre o ego, o medo e a necessidade de conexão humana. Pau Masaló convida-nos a redescobrir o teatro como um ato vivo e comunitário, onde o que importa é o encontro entre artistas e público.


O que te inspirou a transformar Hamlet num talent show intergeracional?

Gostaria de esclarecer que, finalmente, o projeto não é exatamente um talent show intergeracional. Durante as primeiras sessões de criação e ensaio, surgiram algumas complicações de produção e novas decisões artísticas que modificaram o projeto, e essa ideia inicial acabou por se transformar. No entanto, é certo que a peça mantém uma certa essência de diálogo intergeracional e de talent show.


Essa ideia nasceu com a intenção de criar um projeto que, a partir do texto de Hamlet e dos temas abordados na obra de Shakespeare, nos permitisse explorar possibilidades para além do teatro de texto e abordar esses temas a partir de uma perspetiva mais contemporânea.


Precisamente, a ideia do talent show surge de um questionamento irónico do cânone do teatro ocidental e da ideia recorrente de que Hamlet é a peça mais importante desse cânone. Costuma-se dizer que todo o ator que deseja demonstrar o seu talento e tornar-se um intérprete reconhecido e prestigiado deve interpretar o famoso solilóquio "Ser ou não ser" pelo menos uma vez na vida. Daí nasce a ideia de uma competição entre os atores.


Como surgiu a ideia de misturar o absurdo e o sublime num cenário inspirado em filmes de zombies?

Interessava-me especialmente aproximar-me a esta obra com um olhar irónico e bastardo, com a intenção de devolver o potencial popular ao texto de Shakespeare. É importante ter em conta que Shakespeare escrevia peças que, na sua época, podiam ser entendidas como teatro popular. Precisamente, essa vontade de dessacralizar as palavras de Shakespeare e de questionar a abordagem academicista e elitista que muitas vezes se faz aos seus textos levou-me a querer abordá-lo de uma forma mais popular e contemporânea.

Nesse sentido, os filmes de zombies respondem claramente a esse imaginário popular. Um dos temas que considero especialmente interessantes em Hamlet é a reflexão sobre a morte e o medo do desconhecido, especialmente aquilo que existe para além da morte. Os zombies são uma manifestação clara desse medo: são mortos que regressaram à vida, e ninguém melhor do que um zombie para explorar as possibilidades da existência para além da morte.


Além disso, considero que Hamlet é um personagem preso entre diferentes planos de realidade: entre o seu pensamento e a sua necessidade de agir. Ele está num estado intermédio, como se vivesse constantemente no limbo, um espaço semelhante ao dos zombies, que não conseguem encontrar descanso eterno até resolverem algum problema que os afeta no seu plano de realidade entre a vida e a morte.


É precisamente nesse espaço intersticial que se encontra o personagem de Hamlet. Por isso, acho que a figura do zombie é uma imagem interessante para definir o estado do personagem, esse viver a cavalo entre a vida e a morte, entre a realidade e o pensamento.


De que forma a tua abordagem visual e política ao teatro se reflete neste espetáculo?

Quanto à metodologia de trabalho e ao resultado final, há uma clara vontade de repensar as formas cénicas contemporâneas. Desde o início, eu tinha claro que o espetáculo devia deixar espaço para o imprevisto, afastando-se do que inicialmente se espera da encenação de uma obra de Shakespeare. Eu queria que os atores não tivessem um texto completamente memorizado e fixo e que, a cada dia, pudessem improvisar em função da resposta do público e do seu próprio estado de espírito. Isso faz com que cada apresentação seja diferente, potenciando a sensação de acontecimento único e irrepetível que, acredito, deve ser o principal objetivo de qualquer criação cénica.


Acho que esta é uma maneira honesta de repensar as artes performativas e a sua função na atualidade, que exige novas formas de criação visual e textual e outras formas de socialização cultural. O teatro precisa recuperar uma conexão direta com o público para gerar um sentido de comunidade. E, a partir de uma perspetiva irónica, acredito que é aqui que reside a força política da proposta.

Além disso, esta peça é abordada com humor e requer muito poucas necessidades técnicas ou cenográficas. Na verdade, acho que poderia ser feita diretamente numa sala de ensaio. Ainda assim, optámos por utilizar uma cenografia vistosa, com um grande cortinado vermelho, uma mesa muito longa e a recriação de uma pedra que simula aquela que Laurence Olivier usava na sua versão cinematográfica de Hamlet, de onde fazia a sua versão canónica do famoso solilóquio "Ser ou não ser".

Essa tensão entre a majestosidade cenográfica e a deliberada pobreza das ações e dos conflitos apresentados em cena gera uma visão crítica do teatro atual. Muitas vezes sinto que, quando vejo montagens com um grande investimento económico por trás, isso não contribui para tornar a proposta mais interessante ou mais relevante para o aqui e agora da sua representação.


Por outro lado, acredito firmemente na possibilidade de gerar espetáculos com uma forte carga discursiva que não exijam uma estrutura cenográfica muito cara. A abordagem estética do espetáculo joga com essa tensão entre as expectativas culturais que rodeiam um clássico como Hamlet e aquilo que o espetador realmente encontra ao assistir: toda a épica aparente é reduzida a pequenas discussões dos intérpretes enquanto tentam fazer a sua versão de Hamlet ao vivo, com materiais pobres e precários. Atualmente, permitir-se aceitar a dúvida como força criativa e brincar com a possibilidade de fazer papel de ridículo diante do público é muito mais revolucionário do que tentar ser provocador e egocêntrico.


Lembra-te dos meus pecados fala sobre morte, arrependimento e inércia. Que reflexão esperas provocar no público?

Durante o processo de criação, os temas que queríamos explorar com o espetáculo foram se modificando. Nesse sentido, a montagem final não oferece uma reflexão direta sobre a morte ou outros grandes temas de forma explícita.


Acredito que o resultado final aborda uma multiplicidade de questões de maneira tangencial e contraditória, nunca de forma unidirecional. Penso que a peça, no fundo, trata sobre a necessidade de superar o medo para se entregar à intuição e poder agir livremente e, também, sobre a importância de manter um diálogo constante com aqueles que te rodeiam para entender que a sua pequena visão do mundo não é necessariamente a melhor nem a que deve ser imposta aos outros. É um espetáculo que reivindica o direito de não fazer nada ou de fazê-lo por motivos que vão além da vaidade pessoal ou da busca pelo sucesso individual.


Essa é uma das lições que se pode extrair de uma leitura atenta do Hamlet de Shakespeare: a obsessão com os próprios desejos e ambições pessoais, leva-nos a um estancamento improdutivo e a um fim trágico. Por outro lado, colocar o nosso ego em diálogo com aqueles ao nosso redor é o que realmente nos impulsiona, nos permite viver e amar.


Essa, acredito, é a reflexão final do espetáculo: deixar de buscar um sentido puramente individual e focar em viver e amar em comunidade.


Como equilibraste os momentos de comédia com a carga dramática da história?

A verdade é que nos libertamos completamente da carga dramática da história original porque, na realidade, não estamos fazendo Hamlet... O que acontece no nosso espetáculo é que um grupo de atores discute entre si sobre qual é a melhor maneira de representar Hamlet nos dias de hoje.


Para nos libertarmos dessa carga dramática do texto original, contamos a trama de Hamlet de maneira resumida e sem nenhum tipo de solenidade. Uma vez que o espetador compreende o argumento da obra de Shakespeare, podemos concentrar-nos em outras questões que, do ponto de vista dramático, nos interessam mais.


É exatamente aqui que nasce a carga cómica do espetáculo: nos conflitos entre os atores, cada um defendendo a sua própria visão sobre como Hamlet deveria ser representado nos dias de hoje. Esse choque de ideias e perspetivas é o que gera o humor e dá sentido à proposta.


Como foi pegar num clássico tão conhecido e dar-lhe uma roupagem nova?

Foi um processo muito interessante e enriquecedor para mim do ponto de vista dramatúrgico. Alguns anos atrás, quando era estudante de direção e dramaturgia em Barcelona, fiz um projeto de pesquisa sobre Hamlet, analisando o personagem central sob a perspetiva da melancolia como uma epidemia que afetava as cortes reais europeias durante a transição do século XVI para o XVII. Para mim, naquele momento, a hipótese principal era que Hamlet estava doente de melancolia e que todo o seu comportamento era consequência dessa afeção. Mas, se eu tiver que ser sincero, atualmente penso que o que acontece com Hamlet é que, na realidade, ele é um narcisista patológico e que seria muito bom ele fazer terapia.


Ainda assim, como a ideia inicial não era fazer uma nova encenação de Hamlet, mas utilizar o texto como ponto de partida para explorar outros caminhos criativos, em nenhum momento senti que estava entrando num terreno perigoso ou desrespeitando as palavras de Shakespeare. O texto de Shakespeare foi apenas um ponto de partida.


Na verdade, do texto original, no espetáculo final só resta o solilóquio "Ser ou não ser" e três ou quatro falas mais. O restante é material novo e original.


O que mais te surpreendeu ao longo dos ensaios e da construção do espetáculo?

O que mais me surpreendeu no processo foi a generosidade das atrizes e do ator. É importante destacar que eu não os conhecia previamente, mas eles já haviam trabalhado juntos em outras ocasiões.

Eles se entregaram de maneira muito generosa a todas as propostas criativas que lhes fiz. Aceitaram o risco e entenderam a necessidade de ir além da sua função como intérpretes para se tornarem também co-criadores da peça.
Estou muito agradecido pela generosidade e pelo talento deles.


Que impacto gostarias que esta versão de Hamlet tivesse no público português?

Em geral, não crio espetáculos esperando uma resposta unívoca dos espetadores.

Não tenho grandes ambições ao prever como eles irão reagir diante da ação. Gosto de lhes dar a maior liberdade possível para que reajam da maneira que mais lhes convier. Acredito que é assim que o teatro ganha sentido.


Se criamos pensando em obter uma resposta única e pré-definida, estamos a limitar e empobrecer as potencialidades do espetáculo. Por isso, não aspiro a nada complicado: simplesmente que se divirtam, que descubram outras maneiras de fazer teatro e que, ao saírem da apresentação, sintam vontade de se abraçar.


O espetáculo vai passar por várias cidades depois da estreia. O que significa para ti levar esta peça a diferentes públicos?

Gosto muito que sejam feitas apresentações em diferentes localidades de Portugal, pois é uma excelente maneira de descobrir como a peça funciona diante de públicos diversos. Acredito que isso reforça a vontade de fazer um teatro popular.


Espero que o espetáculo seja bem recebido onde for estreado e que, com cada nova apresentação, a obra se enriqueça. Gostaria que os atores pudessem introduzir pequenas modificações para adaptá-la ao público de cada localidade onde for apresentada.


Como foi trabalhar com a Momento – Artistas Independentes? O que destacas nesta parceria? Como olhas para o teatro feito atualmente?

Trabalhar com o Momento Artistas - Independentes foi um grande prazer.

Senti-me em casa, e o processo foi realmente muito fácil e agradável. Eles se ocuparam de toda a parte de produção do espetáculo, o que me permitiu concentrar-me completamente na parte artística.

É um grupo de pessoas jovens com muito talento, com ambição e com vontade de fazer um teatro diferente e pessoal. Prevejo um grande futuro para eles.


Acredito que atualmente se produz um teatro acomodado, pouco crítico com o próprio meio e com a realidade social e política do momento.


Ao contrário de outras artes, tenho a sensação de que o teatro precisa urgentemente redescobrir a sua essência para recuperar o protagonismo que teve em outros tempos dentro do setor cultural.


Por isso, acredito que faltam mais recursos económicos, mais apoio institucional e criadores e criadoras com uma visão mais crítica e complexa da realidade.


Ainda assim, tenho esperança porque cada vez vejo pessoas mais jovens criando espetáculos mais interessantes.


Foto: © José Caldeira

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