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O Belo Aos Quadradinhos

Por

 

Ivo Saraiva e Silva
April 25, 2025

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O Belo Aos Quadradinhos

Em 1950, Jean Genet roda um importante filme, um belo escândalo em curta-metragem.


Genet dedica-nos uma Un Chant d’Amour (1950) distinta das demais, que dedilha uma estreita sedução entre os códigos do desejo e do amor, num lugar feito jaula. Com singularidade, este é um lugar que não se restringe ao espaço físico principal em que reúne as personagens para a ação, mas transborda para um outro, para aquele que encerra as imagens em quadradinhos de frames e os coloca em sequência. Em Genet, para que as sensações estalem com as paredes brutas daquelas celas, e se insurjam para lá delas, é necessário que o veículo pelo qual o autor namora com o espectador, o cinema, assuma igualmente o estatuto de cárcere. Desta forma, os corpos ardentes dos atores exploram uma resistência aos limites das paredes (da prisão) e da imagem, ao mesmo tempo.


Umberto Eco sublinha em História do Feio: “Montaigne pergunta (Ensaios II, V): “O que é que o ato sexual, tão normal, fez ao homem necessário e legítimo, para que ele próprio já não ouse falar dele senão com vergonha e para excluí-lo dos discursos sérios e ponderados?


Pronunciamos corajosamente: matar, roubar, trair; e porque é que essa coisa só se haveria de pronunciar por entre dentes?” Com efeito, o ser humano não estava à vontade (pelo menos na sociedade ocidental) com tudo aquilo que é excrementício e tudo o que se refere ao sexo.


Metem-nos nojo e, portanto, consideramos feios os excrementos (os dos outros, inclusive dos animais, muito mais dos nossos) e, em O mal-estar da civilização, Freud observava que “os órgãos genitais em si mesmos, cuja vista é sempre excitante, nunca são considerados belos”.


Esse embaraço exprimiu-se através do pudor ou, então, do instinto ou do dever de abster-se de exibir ou de se referir a certas partes do corpo e a certas atividades. Naturalmente, o sentido de pudor mostrou-se variável segundo as culturas e os períodos históricos.” (ECO, Umberto, História do Feio, trad. António Maia da Rocha, Lisboa: Difel, 2007, p. 131).


Em bom rigor, ao colocar as suas personagens dentro de celas e a fazer a ação acontecer dentro de uma prisão, Genet canaliza a sua temática dentro de um corpo-instituição que é considerada marginal, por um lado, e que assume um caráter de “vida invisível” à sociedade – isto é, quem é condenado à vida nas celas vê-se afastado do quotidiano comum para viver uma circunstância onde, inclusive, a violência é permitida porque é institucional.


Neste exercício fílmico em que o cinema se confunde com o bailado, ausculta-se o movimento que resiste à clausura. E, neste sensual baile (não) coreografado, concluímos que o envolvimento dos corpos é permitido através da extensão deles próprios, concretizada a partir dos seus movimentos individuais. O individual torna-se no coletivo. No momento em que visionamos duas personagens (que estão em celas diferentes mas lado a lado) a envolverem-se através do fumo de um cigarro largado através de uma fissura da parede, entendemos que esse mesmo fumo torna visível o ar que está impregnado de prazer. O mesmo ar que rima com essa energia estonteante da revolta feita desejo, desse desejo que se firma em amor. Não se vê mas está lá. E é essa a extensão principal que dá a agitação corporal que não se deixa prender, a identidade que não se segura. Acaba por ser este o exercício do belo em Genet: a estese que não se vê.


Em Movimento Total – O Corpo e a Dança, José Gil afirma acerca de Nijinski: “O espaço do corpo é esse meio espacial que cria a profundidade dos lugares. Se certo local da cena se torna de súbito ilimitado, se o alto em cuja direção Nijinski se projeta adquire uma dimensão infinita, é porque a profundidade aí nasceu.” (GIL, José, Movimento Total – O Corpo e a Dança, Lisboa: Relógio d’Agua, 2001, p. 65). O efeito que Gil revê em Nijinski não está muito longe do efeito que Genet acaba por oferecer. Por causa dos lugares se tornarem insuportáveis para aquelas figuras enclausuradas entre paredes brutas, os corpos movimentam-se para revelarem uma energia através da qual se emancipam e se desejam, se amam, o que torna os lugares amplos, ilimitados, passíveis de toda a experiência. Ademais, se se estabelecer os limites do lugar, da prisão, em analogia com os limites da imagem que se visualiza, então a amplitude do lugar concreto combina com a infinidade do acontecimento cinematográfico.


Há uma canção que é um grito dentro de uma caixa de impressionar, onde se pode ser tudo. O cinema como a possibilidade de tudo, e talvez Genet visse a arte dessa maneira. Não obstante, o facto do contexto ser o de uma prisão e das sensações e sentimentos serem experimentados dentro das celas (pelos prisioneiros) e fora delas (pelo guarda), realça um aspeto particular: o de contrariar o objeto de um lugar opressivo, o de ser tudo num lugar em que é suposto ser-se nada, o de criar a narrativa ilusória de que não se é coisa nenhuma para se criar uma comunidade de desejo. Deste modo, a circunstância verdadeira continua a existir mas passa a ser ficcional, e a prisão é transformada numa espécie de jardim da liberdade – mesmo não deixando de ser cadeia, pois é essa condição que dá força e verdade à emancipação dos corpos. Observa-se uma comunidade de corpos em cadeia. Quem observa são os espectadores do filme mas também o guarda, que é a versão ficcional e fílmica do observador, uma audiência de voyerus com o guarda, cumprindo um truque meta-cinematográfico leal ao tema – o espaço que se vai alargando. Genet convida-nos a habitar aquela jaula degradada, a ser uma comunidade dos espetadores que assiste ao guarda e que, tal como ele e por sua vez, assiste à comunidade dos corpos e se deleita com eles. Se a figura do guarda está presa nos limites da imagem de que se falou, que espécie de prisão é a dos espetadores que, ao assistirem ao filme, assumem a analogia desta personagem?


Nesta curta-metragem de vinte e cinco minutos e vinte e três segundos, o autor procura criar uma sensação para o espetador através de uma sequência de frames que exploram uma narrativa do belo. Dedilha-se o desejo como se se atravessasse uma canção: Un Chant d’Amour. Uma canção que brota do suor incandescente dos corpos levados ao expoente do desejo, que faz do ato cinematográfico uma emancipação mais feérica.


Foto: © Alípio Padilha

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