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A cena é a seguinte: uma sala de museu; uma visitante, uma guarda de museu; a visitante diz conheço-o. Está a falar da pessoa retratada no grande quadro da sala. A guarda pergunta O quê? E a visitante repete Conheço-o. É o Jean. Aponta para o quadro. A guarda acena com a cabeça. Parece-lhe improvável, mas não duvida nem acredita. É indiferente se ela o conhece ou não. Na verdade, a guarda estava a passar em revista a série de tarefas que está a adiar por estar ali. Mas isso é história para outra altura. A visitante diz E tu, como estás? A guarda olha, mas não é para ela que a visitante fala. É para o quadro. Para o retratado. O Jean. Um rapaz na casa dos trinta anos, tronco nu, cabelo pelos ombros, a olhar para a parte superior esquerda do quadro, como se não nos quisesse ver, ou como se alguma coisa o atingisse por trás, e aquela posição fosse só a reacção a esse golpe. A mulher aproxima-se do quadro, e estende o braço para ele. Quase lhe toca, mas a guarda impede. Elas lutam por um instante. E o que nós vemos é esta luta em frente a um quadro que acaba por justificar a intenção do retratado ao desviar o olhar. Não encarar o que está diante do quadro. Não testemunhar. E do meio da luta, traída pela indiferença, a visitante diz
Porque é que não olhas para mim?
Talvez devesse estar escrito Porque é que ele não olha para mim?, diz-me o meu companheiro de escrita sobre esta cena que apresentei como rascunho. Achas que é preciso?, respondo. Quer dizer, só estão elas em cena e a moldura com o quadro do homem a olhar para outro lado… Não será evidente? E uma cara torcida denuncia todas as dúvidas que o meu companheiro tem sobre a cena, e a vontade de que o texto explique um pouco mais.
Sempre me senti atraído por coisas que não são fáceis de explicar. Esta própria atração é difícil de defender; ou até mesmo de definir. A verdade é que por vezes, ao escrever, opto por enigmas, ou interrogações, mais do que soluções. É uma tentação tramada, há que dizer - provavelmente já o sentiram por aqui, se vão lendo estes textos. Muitas vezes, parece-me, é a tentação de uma espécie de ausência de compromisso: ou um compromisso com a dúvida. Às vezes, quando me perguntam o que algo que eu escrevi quer dizer eu simplesmente não sei responder. Tenho de ler e interpretar. Lembro-me de ler, enquanto adolescente, um texto em que o Harold Pinter se demitia da responsabilidade do que escreveu ouvi as personagens dizer aquilo. Só escrevi o que ouvi. E é isso mesmo que eu sinto, por vezes. Nascem ideias na cabeça, ou na ponta dos dedos, ou onde quer que nasçam as ideias, e eu deixo-me levar por elas.
É algo que sempre estimei, mas parece que escrever é uma espécie de artesanato: a técnica melhora com o tempo, e com as experiências que fazemos. Pelo menos, cria-se o potencial de melhorar; e talvez este exercício seja só uma parte da escrita.
Sempre gostei dos rascunhos dos outros. No caminho para chegar ao Guernica, o que mais me comoveu foi a sala de estudos que antecede o quadro. Na internet, babo-me ao olhar para as fotografias de rascunhos de Dostoiévski, ou Beckett. What is Life but a preference for the ginger biscuit?, descobri numa folha (fotografada e perdida na internet) de um caderno deste último, e é a minha “imagem de capa” no Facebook. A folha de rascunho é o grande deserto por onde divagamos, expostos à revelação, antes de sair esclarecidos para a escrita. Pela minha parte, que não tenho propriamente metodologia específica, recorrentemente saio para uma caminhada depois de escrever um rascunho; e é enquanto caminho que escrevo o texto na cabeça.
Nos últimos anos tenho tido o privilégio de escrever para novos desafios: para ser traduzido, por um lado, e para que outras pessoas encenem. Tendo começado a escrever para teatro de uma maneira mais regular em 2017, estes últimos anos, em que o motivo da escrita é, por vezes, exterior a mim, e em que não tenho grande mão sobre a forma que o que escrevo toma em cena, têm sido um percurso de profunda aprendizagem.
Ver como germinam as sementes que deixamos na página faz-nos perceber como é imprevisível a forma como nos lêem. Já o sentimos ao escrever SMS, e muitas vezes complementamos uma frase com um “:)” só para esclarecer o tom. Escrever para cena é minar subtilmente o texto de “:)” ou “:(” na forma de jogo. É uma escrita subterrânea. É apagar muita coisa. Deixar o contorno de conflitos. Tecer uma rede. A pessoa lê
Porque é que não olhas para mim?
E pergunta Será que está a falar do homem no quadro; ou será da guarda da sala? E alguém responde Da guarda da sala? Como assim? E a pessoa aprofunda Como se estivesse a denunciar que há qualquer coisa que ela não está a ver, que está a agir de uma maneira incorrecta, que não a está a ver de facto; ou que se dá por vencida e por isso quer que a outra a reconheça como pessoa. Como Jacob e o Anjo? Como Jacob e o Anjo, exacto. Finalmente, dirão Ficamos por aqui. Estou convencida de que ela está a falar para o quadro, mas não podemos excluir a outra hipótese, e o que isso nos diz. Mas será que a frase foi escrita com essa intenção? Não sei; mas que importa? O autor não está presente; e mais: o que sabia ele sobre o que escreveu?
Imagem: Reprodução de uma folha de rascunho de Samuel Beckett
BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.
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