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Os efeitos nocivos do uso excessivo e prolongado da tecnologia digital estão há muito na ordem do dia. “Brain rot” (podridão cerebral) é sinónimo de desconexão e atrofia cognitivas e comportamentais, mas como está a influenciar a própria recepção cultural e artística?
É conhecida a tese do filósofo Blaise Pascal que, no século XVII, defendia que a infelicidade do indivíduo estava directamente relacionada com a sua incapacidade de estar sozinho, consigo mesmo, num quarto. Volvidos quase 400 anos, é um facto que esta crítica à dificuldade humana em privilegiar a introspecção e o recolhimento continua a fazer sentido enquanto reflexão intemporal. Mas, por outro, esta imagem ganha renovados contornos na contemporaneidade, na medida em que, devido à prevalência da tecnologia, a infelicidade e a debilidade mental/intelectual do indivíduo podem precisamente resultar da excessiva, prolongada e isolada/isolante dependência em relação a dispositivos e conteúdos digitais, bem como da ausência de outros estímulos, de origem diversa, e do próprio contacto físico com o Outro.
Já em pleno século XIX, quando a sociedade enfrentava significativos desafios, mormente o arranque do processo de industrialização, o filósofo e escritor americano Ralph Waldo Emerson introduzia o conceito de “transcendentalismo” para enfatizar a importância de uma introspecção metódica que visasse ultrapassar um estádio perceptivo mais superficial para se atingir o “eu” profundo. Henry David Thoreau, que também integrava esta corrente, na sua seminal obra Walden ou A Vida nos Bosques, de 1854, preconizava, na mesma linha, a necessidade de uma vivência espiritual e autossuficiente imune aos malefícios da experiência urban(izad)a e da civilização industrial. Thoreau realçava a importância de uma vida simples, em estreito contacto com a natureza, sem “batatas podres”, surgindo então aí a expressão “brain rot”, adoptada para criticar a desvalorização e simplificação de ideias complexas enquanto sinal de declínio cultural.
Em 2024, como já amplamente difundido, a Oxford University Press elegeu a expressão “brain rot” como palavra do ano, sendo que a sua utilização aumentou 230% nos últimos meses, em particular no TikTok, entre os utilizadores da Geração Z e da Geração Alfa. Mas este uso constante e “obsessivo” dos (omnipresentes) dispositivos móveis e da internet abrange tanto adolescentes como adultos. Quer num segmento etário quer noutro, mais de 90% têm acesso a aparelhos digitais e usam a internet diariamente.
Se também é um facto que, por causa da torrente digital, têm vindo a explorar-se novas formas de conexão, algumas delas dotadas de inegável criatividade (por exemplo, vários docentes recorrem a memes para explicar conceitos complexos), é incontornável que se assiste actualmente à consolidação, em toda a linha, de um modus vivendi pautado por uma dependência globalmente pouco saudável – isto em termos motores, psicossociais e neurológicos – face à tecnologia digital e às redes sociais.
Vários estudos científicos têm vindo a demonstrar que uma exposição de mais de três horas diárias à internet no público adolescente (a média actual, nesta faixa etária, situa-se nas cinco horas por dia) pode provocar riscos de depressão, bem como sintomas de ansiedade e outros estados patológicos afins. A prática neurocientífica tem igualmente atestado que áreas e mecanismos cerebrais responsáveis pela memória e pela percepção sofrem processos de abrandamento (ligando-se às ideias de “nevoeiro” e “overbooking” cerebrais), enfraquecimento e lentificação quando expostos, de forma intensiva, a conteúdos digitais de baixa qualidade e pouco desafiantes. Três variáveis assumem particular relevância neste tipo de conectividade: a quantidade de material visionado; a similaridade do mesmo; e a forma como é absorvido (num ambiente com ou sem interrupções).
Mas este fenómeno, que percorre de modo recorrente todos os quadrantes da vida privada e social contemporânea, manifesta-se igualmente na área cultural e artística, sobretudo na sua dimensão da fruição. A dependência excessiva em relação aos dispositivos móveis e ao uso da internet em contextos ligados à cultura e artes e ao lazer/entretenimento conduz tanto a experiências e percepções individuais mais redutoras, não focadas e deficitariamente imersivas como a práticas de sociabilização mais incipientes e fugidias, não aprofundadas e pouco horizontalizadas.
Para dar espaço ao espanto, é preciso, não poucas vezes, um tempo longo, não utilitarista, não simplificado ou estupidificado, é preciso que haja disponibilidade para a atenção se demorar em algo ou alguém, para poder ouvir gritar baixinho, para atender ao pormenor, à nuance, ao espaço em branco. Daí que seja urgente um reencontro e reaprendizagem do espanto como algo inesperado, repentino e assombroso, que interpela e questiona crítica e criativamente, que é vital à condição humana.
A “podridão cerebral”, derivada do uso menos sensato e massivo da tecnologia digital, é uma alarmante bolha silenciosa, uma doença que não dói nem se vê, fruto de uma espécie de gotejamento que vai enchendo, saturando e deformando a capacidade mental de incorporar, processar e armazenar o imenso manancial de informação disponível.
Esse definhamento da sensibilidade, da disponibilidade para a interacção, da capacidade de gestão da espera, da expectativa e do contraponto, dos níveis de concentração, da possibilidade de desdobramento cognitivo dos conteúdos assimilados, é um fenómeno preocupante e com múltiplas repercussões na vida individual e colectiva. No caso dos eventos culturais e artísticos (e em particular em disciplinas que implicam maior esforço, foco e zoom atencionais, como o teatro, a dança, a performance ou mesmo o cinema), quer a permanente inquietação física e ansiedade psicológica em relação a feeds, notificações, mensagens, comentários, likes, emails e derivados, quer a quase obsessão com o aturado registo fotográfico ou videográfico e publicitação online desses momentos, traduzem-se, não poucas vezes, em experiências incapazes de estabelecer conexões mais profundas, densificadas e efectivamente dialogantes com as propostas, formatos e protagonistas em causa. O que acaba por resultar, amiúde, numa apreensão pouco satisfatória, exigente e eficaz das variadas camadas de significação e complexidade desses conteúdos.
Para lá das suas dimensões emocional, intelectual e espiritual, a fruição artística implica igualmente a existência de um corpo poroso-esponja, de uma postura físico-motora orgânica, não automatizada/"chipada" e liberta de amarras e condicionamentos externos (que mergulha de modo total no espaço-contexto), de uma corporalidade pensante que convoca inquietações e interrogações em torno do objecto visionado.
Além disso – e ainda sobre contextos culturais, nomeadamente em espaços indoor –, estes comportamentos digitalmente muito dependentes não têm um efeito pernicioso apenas nos seus praticantes, mas também nos demais espectadores em redor (pelo efeito de distracção, incómodo visual/auditivo e até de potencial mimetismo), quer ainda nos próprios fazedores que estão em palco a apresentar o seu trabalho. Não se trata aqui apenas de garantir uma fruição mais plena e imersiva da cultura e da arte, mas também de uma atitude de respeito pelo Outro e pelo seu espaço.
Para lá desta dimensão sociocultural, a que Zygmunt Bauman chamou de “modernidade líquida”, marcada pela falta de aprofundamento e pela superficialidade e imediatismo, esta problemática assume, como já referido, impactos reais na própria estrutura cerebral. Um estudo recente desenvolvido pela Universidade de Hong Kong permitiu concluir que a exposição excessiva a écrans tem um efeito prejudicial na neuroplasticidade em crianças. Afectando a formação e reorganização das redes neurais – que é um processo essencial para o aprendizado, desenvolvimento cognitivo e adaptação a novas experiências –, esse comportamento pode condicionar e limitar as habilidades para resolver problemas e tomar decisões futuras, comprometendo igualmente o desenvolvimento da memória e da atenção.
Uma outra pesquisa científica, incidindo sobre adultos e publicada na National Library of Medicine, constatou que o uso prolongado de dispositivos digitais pode reduzir a massa cinzenta do córtex (região cerebral responsável pelo controle de impulsos e escolhas conscientes). A utilização excessiva das redes sociais está igualmente associada a maiores dificuldades na realização de tarefas executivas (planeamento, organização e memória de trabalho).
Daí que seja fundamental preservar e estimular a neuroplasticidade do cérebro humano, pois é esta que permite ao sistema nervoso central ser adaptativo e dinâmico, em termos cognitivos e motores, face a novas exigências ambientais e/ou a limitações impostas por lesões do mesmo. A cultura e as artes, sendo uma fonte inesgotável de novos mundos possíveis, ousadia, questionamento, criatividade e risco, desempenham por isso, um papel crucial nesse desiderato e na manutenção do bem-estar mental e emocional, como, de resto, a neuroestética – novo campo de pesquisa dedicado ao estudo científico das bases neurobiológicas das artes – tem vindo a evidenciar através do recurso a imagens cerebrais, tecnologia de ondas cerebrais e biofeedback.
A ativação de diferentes e específicas áreas cerebrais (que não as ligadas ao pensamento lógico e linear), a redução dos níveis de cortisol (stress), a existência de respostas adaptativas à pressão/rotina ou a indução de estados mentais mais positivos traduzem esse efeito positivo das artes. É precisamente essa mutação cognitiva na estrutura holística/fluxo cerebral que configura o eixo cultura-artes como uma das ferramentas privilegiadas para a manutenção da concentração, para a adopção de uma atenção plena e de uma cognição mais aprimorada, e sobretudo para uma atitude psicossocial mais humanizada, menos autocentrada e mais empática.
Para que não se acabe de vez com o cérebro, esse que o singular Chaplin considerava o melhor brinquedo alguma vez criado, por nele residirem todos os segredos, inclusive o da felicidade. E que ao ligar o écran o indivíduo não desligue acriticamente o cérebro, ao contrário do que ironicamente constatava Steve Jobs numa célebre frase.
Paulo Pires é gestor cultural e programador.
Trabalha, desde 2023, no Ministério da Coesão Territorial, inicialmente como assessor da Presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I. P., e actualmente como responsável pela sua área da Cultura.
Além de professor/formador, músico e mediador, desempenhou funções de direcção artística e de programação cultural em autarquias como Loulé e Coimbra.
Foi director do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, assessor do atual Director-Geral das Artes e adjunto da ex-Ministra da Cultura, Graça Fonseca.
A sul, no Algarve, foi também coordenador da programação cultural no Município de Silves, programador na Fundação Manuel Viegas Guerreiro (Loulé) e investigador, na área etnomusicológica, no Centro de Estudos Ataíde Oliveira da Universidade do Algarve.
É autor de inúmeras conferências, artigos e livros sobre cultura, artes e criatividade.
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