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Fumo e Espelhos

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Ivo Saraiva e Silva
October 30, 2024

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“A casa. / Na casa está a sala. / Na casa está a sala, e na sala está o pai. / Na casa está a sala, e na sala está o pai e a mãe. / Na casa está a sala, e na sala está o pai, a mãe e o bebé. / Na casa está a sala, e na sala está o pai, a mãe, o bebé e o crocodilo. / Adeus, pequena família!”

(JOSLIN, Sesyle, 2023, A Pequena Família, trad. Rita Custódio e Àlex Tarradellas, Matosinhos: Kalandraka)

 

*

 

Os lugares fazem-se pelas suas habitações. A casa assume um elemento determinante na nossa trajetória. Como uma extensão dos corpos humanos, a casa figura um abrigo e salvaguarda uma favorável solidão a quem a habita – que permite refletir e reestruturar o eu. Gaston Bachelard chama-lhe “o não-eu que protege o eu”: “Em suas Memórias, Alexandre Dumas diz que era um menino entediado, entediado até às lágrimas. Quando sua mãe o encontrava assim, chorando de tédio, perguntava-lhe:

- E por que é que Dumas está chorando?

- Dumas está chorando porque Dumas tem lágrimas – respondia o menino de seis anos. Esta é sem dúvida uma anedota como tantas outras contadas nas Memórias. Mas como ela marca bem o tédio absoluto, o tédio que não é o correlativo de uma falta de amigos para brincar! Não existem crianças que deixam o brinquedo para ir se aborrecer num canto do sótão? Sótão dos meus tédios, quantas vezes senti a tua falta quando a vida múltipla me fazia perder o germe de toda liberdade!”

(BACHELARD, Gaston, 2008, A Poética do Espaço, trad. António de Pádua Danesi, Brasil: Martins Fontes, p. 24 e 35).

 

Quando refletimos sobre a casa, notamos que é ela que reflete sobre nós. A partir das suas arquiteturas, sim, são essas mesmas caraterísticas arquitetónicas e decorativas que inauguram padrões em cada localidade ou país e, por conseguinte, vincam lógicas de relação e de comportamento correspondentes. Mas ainda, as casas também acabam por retratar o período histórico em que foram construídas.


Os lugares fazem-se pelas suas casas, e as pessoas que nelas habitam modelam-se a partir da influência que as suas casas lhes dedicam. Desde o nascimento que a pessoa vai sendo modelada por aquele sítio que a protege, a guarda, antes de se desafiar no contexto social. Isto é, a criança é construída a partir do acontecimento do lar, que a vai formatando segundo códigos invisíveis que lhe dispõe, para depois confrontar o mundo interior que construiu a partir de casa com outros mundos de outras crianças. – o “corpo da casa” é refletido no “corpo humano”.


A propósito da relação “corpo da casa” com “corpo humano” e a sua reflexão mútua, recorde-se Gonçalo M. Tavares, numa referência-dominó que verifica a construção de uma casa/lar de um pássaro: “No capítulo “O Ninho”, Bachelard cita Michelet: “O pássaro”, diz Michelet, “é um operário desprovido de qualquer ferramenta.” Não tem “nem a mão do esquilo, nem o dente do castor”. No entanto, tem uma ferramenta, uma última ferramenta: “o próprio corpo do pássaro”. Assim é com o seu peito que “ele aperta e comprime os materiais até torná-los absolutamente dóceis, até misturá-los, sujeitá-los à obra geral.” No pássaro todo o corpo é mão. / Estamos perante uma “arquitetura dos pássaros”. A casa é uma ampliação da anatomia; um anexo anatómico, se assim nos podemos exprimir. Bachelard cita de novo Michelet: “No interior, o instrumento que impõe ao ninho a forma circular não é senão o corpo do pássaro. É virando-se constantemente e recalcando as paredes de todos os lados que ele consegue formar esse círculo.” É o próprio movimento do corpo que faz, não há nenhum órgão especializado em fazer: o pássaro faz porque se mexe, o pássaro faz porque não é um bicho imóvel, faz porque evita a imobilidade, ou melhor: porque é incapaz de estar imóvel. Mas claro que aqui a saída da imobilidade é uma saída com um determinado sentido, saio da imobilidade de maneira prática; afasto-me utilmente da imobilidade: construo.” (TARAVES, Gonçalo M., 2013, Atlas do Corpo e da Imaginação, Lisboa: Relógio d’Água, pp.414 e 415).


É na consciência de que as caraterísticas físicas de uma casa moldam e determinam as identidades de quem a ocupa – princípio-base da arquitetura -, através das experiências que proporcionam, que os diversos governadores dos países e em diferentes períodos da história contruíram os seus locais – ora para ostracizar ora para incentivar motores de desenvolvimento. Definir um tipo de construção das casas é definir um tipo de pessoas. O ser humano construiu as casas para construir pessoas.


É porventura, na esteira desta ideia, que começamos a desconfiar das casas das pessoas-cidadãs comuns e se as mesmas ensaiam o enigma da liberdade que queremos assistir nas nossas ruas e vivenciar sob as nossas peles. Bachelard também insiste no “sonhador de casa” que é reprimido por aquela na qual habita: “Em Paris, não existem casas. Em caixas sobrepostas vivem os habitantes da grande cidade: “Nosso quarto parisiense”, diz Paul Claudel, “entre suas quatro paredes, é uma espécie de lugar geométrico, um buraco convencional que mobilamos com imagens, com bibelôs e armários dentro de um armário.” O número da rua, o algarismo do andar fixam a localização do nosso “buraco convencional”, mas nossa morada não tem nem espaço ao seu redor nem verticalidade em si mesma. (...) A casa não tem raízes. Coisa inimaginável para um sonhador de casa: os arranha-céus não têm porão. Da calçada ao teto, as peças se amontoam e a tenda de um céu sem horizontes encerra a cidade inteira. Os edifícios, na cidade, têm apenas uma altura exterior.” (Bachelard: p. 44)


Sabemos, na literatura dramática, da heroica Nora que se livra da casa como signo da sua emancipação, mas também das filhas de Bernarda Alba que se veem com o destino trancado e estéril, numa casa fechada a sete chaves. Na postura reversa, a Liubov d’O Cerejal que, ainda que entenda a falência da casa agora obsoleta, não deixa o paradoxo de se frustrar por deixar o lar querido da sua infância, a “casa dos sonhos”, a “das crianças”. Ainda assim, tanto em Tchekov como em qualquer um dos outros exemplos (Ibsen, Lorca), trata-se de uma ação unívoca: a de denunciar a casa que oprime.


Este ato de denunciar a casa, e de a denunciar igualmente através da literatura, tem em Sophia de Mello Breyner Andersen, A Menina do Mar, um truque poético-político mais português. Não é por acaso que Sophia faz esta denúncia a leitores infanto-juvenis, pois interessa-lhe dirigir-se àqueles que ainda habitam a casa natal, a casa da formação identitária – o “centro dos sonhos”, como nomina Bachelard (“Mais do que um centro de moradia, a casa natal é um centro de sonhos” [idem, p.34]), pois é aí que todos os sonhos são fabricados sem precedentes e sem medir o seu grau de concretização. Não obstante, mais do que essa dedicação a um leitor específico, à obra de Sophia interessa-lhe a experiência de um adulto a recordar a casa da sua infância, onde primeiro se riu e se emocionou. Conta Bachelard que o leitor, ao ler sobre uma qualquer casa do passado, transporta-se subtilmente (e sem contar) para casas que outrora conheceu, construindo uma outra, específica na sua imaginação, para melhor se relacionar e emocionar.


Assim, através das palavras, Sophia deseja desafiar poeticamente e politicamente essa casa longínqua que teria (e tem!) ressonâncias muito diretas nas casas do leitor. É, dessa forma, que a autora consegue colocar essas duas casas imaginadas em espelho, a dela e a do leitor. Tal como se estivessem a olhar uma para a outra, reconhecendo-se e fundindo-se. Mais ainda, depois de conseguir esse vínculo, abre o espetro que combina as casas do passado com as casas do presente, assumindo uma perspetiva em que as duas se tocam e, possivelmente, são a mesma. Mais um reflexo.


Toda este imenso gesto com as palavras começa com “Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar.” (BREYNER ANDERSEN, Sophia de Mello, 1998, A Menina do Mar, Figueirinhas, p.5). A particular caraterística das águas do mar refletirem os elementos, combinada com a casa “voltada para o mar”, faz com que essa habitação assuma um espelho do mar, e vice-versa. Neste curso, os aspetos que Sophia tributa às diversas personagens satélites – a saber, o polvo, o caranguejo e o peixe – têm a ver com personificações de figuras-tipo do mundo terrestre, isto é, o do menino que se surpreende com a menina do mar. Isto quer dizer que, a partir deste jogo de espelhos, a autora procura nas figuras do mar resposta para as personas da terra, ao mesmo tempo que se inflama de dúvidas sobre o mar e tenta soluciona-las em terra. Os perigos que ela apresenta relacionados com o mar, de que a Grande Raia é protagonista, retratada como um animar insaciável que come tudo, todos os peixes, e faz dos humanos hambúrgueres para a sua gula, implicam os perigos que a autora deteta no seu contexto – especialmente português. Não é inocente o facto desta história passar-se à beira-mar. Ao transportar o leitor para uma praia, para a “ocidental praia lusitana” (Luís de Camões), Sophia enfrenta a portugalidade do seu leitor e o seu país. Num circuito de 360º, a Menina do Mar consegue articular uma multiplicação de espelhos, de casas, sempre no pensamento e interrogação da identidade do corpo humano que é soletrada pelo corpo da casa. As casas de infância, imaginadas quer pela autora quer pelo seu leitor, voltadas uma para a outra que, por sua vez, estão voltadas para o mar, essa casa-enigma que se transforma e morre uma e outra vez no areal português (o mar que se transforma em relação com o pássaro que recusa a imobilidade).


Sophia apresenta a narrativa da menina através dos olhos do menino, que, por reflexo, é ela própria. Todas as trajetórias das personagens do conto afiguram-se espelhos umas das outras, o que faz com que a autora seja o menino e a menina ao mesmo tempo, e os assuma literariamente. No final, os dois acabam por sentir saudade, que é a descoberta da menina que é a constatação do menino (ao pensar sobre essa noção), que é a mesma saudade que Sophia sente da infância que escreve – a saudade é o conceito que une as três identidades, e é também o sentimento customizado de ser português.


A casa branca voltada para o mar – teríamos muito a dizer sobre o facto da casa ser branca -, esse mar que é, por reflexo, a casa-natureza, Sophia transforma, por desdobramento, na casa-grande-país, nessa imensa praia ainda por resolver.


Não é ingénuo este apelo de transformação que Sophia faz aos adultos, num conto infantil: Porque todas as pessoas podem ser adultas amanhã. Paradoxalmente, ao ensaiar o corpo humano adulto que se formou no corpo-casa dos tempos idos, o conto faz-nos percorrer um labirinto interior que perceciona dogmas enraizados, talvez lute para os desbloquear, nas ruínas das nossas habit(u)ações portuguesas. A casa que recordamos como um espelho nosso, e que reconhece essa criança que se recusa a ir embora. Bem, disse-se o óbvio. Mas o que há de invisível numa casa?


_________

Abram bem os olhos. Agora fitem este pêndulo. Não parem de fitá-lo com o olhar. O vosso olhar começa a humedecer-se. Estão a ver tudo muito turvo. Estão a começar a sentir sonolência e apatia? Não desistam. Conseguem ver para além dessa fumaça? Conseguem perder-se no labirinto de espelhos? Agora repetimos tudo outra vez, mas de olhos fechados. Oiçam apenas o som da nossa voz: Isto é tudo smoke and mirrors. Uma rubrica dos SillySeason em parceria com o Coffeepaste, na eminência dos perigos hipnóticos da sociedade atual.


Foto: Alípio Padilha


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