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Sete dias depois de a minha gata, Dalila, companheira de 20 anos, ter morrido, tive um sonho. Cheguei a casa e ela estava deitada no sofá – naquele sofá que já nem está na nossa sala, que é o antigo, o da minha infância. Eu penso que estou a alucinar, começo a tocar-lhe, percebo que é real porque ela me pede festinhas e se deita de lado, como costumava fazer. Chamo a minha mãe e digo-lhe que não pode ser, que não faz sentido, então se a deixámos no veterinário apenas uns dias antes, como raio é que a nossa gata pode estar ali. A Dalila levanta-se para ir comer à cozinha e segue em direção aos quartos. Eu e a minha mãe vamos atrás para confirmar se deixámos alguma janela aberta por onde ela pudesse ter entrado e a resposta é sim. No jardim do lado de fora (moramos no rés-do-chão, claro), está um homem com ar de desenho animado, muito sujo e com uma gabardina comprida. Imediatamente percebemos - como só se percebe nos sonhos, sem que ninguém nos explique absolutamente nada - que foi ele quem trouxe a gata e que os dois andam a viajar juntos, por aí. Ela sobe-lhe para o ombro e viram-nos costas. Eu grito e repito um “até já” e sei, mesmo a dormir, que estou a dizê-lo tantas vezes para pedir que regressem. De repente, as janelas transformam-se em portas, enquanto as fechamos. Eu espreito uma última vez e vejo a Dalila e o homem a mergulhar num riacho e a nadar, lado a lado.
Bem sei que os sonhos são as histórias que ninguém gosta de ouvir contar. Aliás, a jornalista inglesa Nell Frizzell, num artigo do The Guardian chamado “Sleep secrets”, faz aquela que é, para mim, a analogia perfeita. Tomando a liberdade de a traduzir, a sua crónica diz que falares dos teus sonhos é um pouco como descreveres o interior da tua boca: íntimo, pessoal, mas sobretudo enfadonho.
Contudo, e à semelhança do que fez a própria, eu não podia evitar escrever sobre eles. É que os sonhos são a representação perfeita da linha entre realidade e ficção que tenho tentado explorar nesta coluna. Não há mais ficcional do que janelas que se transformam em portas, jogos de futebol em palácios e férias em janeiro (para enumerar só algumas coisas que povoaram o meu imaginário adormecido recentemente). Ao mesmo tempo, também não há nada mais real, na medida em que é verdade que os sonhos acontecem. Quando nos deitamos, é tão possível sonharmos quanto é possível acordarmos com vontade de ir à casa de banho a meio da noite. Os sonhos são ficções prováveis e, por isso, inevitavelmente, mais reais.
Talvez o próprio sono seja um jogo de faz-de-conta, uma simulação, quase teatral. No livro “Mártir!”, editado em Portugal pela Relógio d’Água, Kaveh Akbar escreve: “O modo como o sono acontecia não como um facto, mas como uma fé. As pessoas faziam de conta que dormiam, confiando que esse fingimento acabaria por se transformar em realidade. Era uma mentira que praticavam todas as noites – ou, se não uma mentira, pelo menos uma representação. (...) Como para incentivar toda essa provação, o corpo oferecia-nos sonhos”.
Adoro esta ideia dos sonhos como moeda de troca pela vida real, mas gosto ainda mais da visão da realidade como o sítio onde tantas vezes temos de criar uma ficção, até para adormecer. Akbar também escreve que estes são termos inegociáveis. Quanto a isso, tenho mais dúvidas.
Ora, a realidade não desaparece só porque sonhamos, isso é certo. No meu caso, eu sabia que a minha gata tinha morrido e que não podia estar ali; pensei no veterinário e no tempo que tinha passado. Só que - porque há sempre pessoas com vontade de negociar - talvez o contrário também venha a ser possível e os sonhos não desapareçam quando acordamos. Em 2025, há investigadores japoneses dedicados a aliar a neurociência e a inteligência artificial para criar um dispositivo capaz de registar e reproduzir os sonhos humanos.
Se também é certo que a realidade contamina os sonhos, sem ser preciso citar Freud ou Jung, há mais uma negociação a entrar em jogo. Graças à psicoterapia, aceitamos o consenso de que sonhamos para processar sentimentos ou problemas da vida real com que estamos a lidar no subconsciente. Graças à empresa Takara - criadora das apps BowLingual e MeowLingual, famosas por traduzir latidos e miados de animais de estimação - e à criação da máquina Yumemi Kobo, também conhecida como oficina dos sonhos, aparentemente é possível escolher o sonho que se quer ter. A realidade pode não só contaminar como decidir os nossos sonhos, se nos gravarmos a descrever a ficção que procuramos.
Se estas tecnologias tornam o inegociável menos certo? Pois. Deixa de ser o corpo a oferecer-nos os sonhos como recompensa pela nossa fé e as séries de “fartas refeições, aventuras exóticas, belas amantes, asas” (Akbar) tornam-se acessíveis de outras maneiras. Agora, se estragam a experiência de sonhar? Provavelmente. Por mais expectável que o ato seja em si, tão expectável que se desejam “bons sonhos” nas despedidas antes de dormir, a grande diversão reside no facto de serem imprevisíveis. Só se convence uma criança de que o bicho papão ou o monstro debaixo da cama é uma ficção quando ela nos acorda de madrugada, tornando a nossa própria noite muito mais real do que gostaríamos. Em todos os outros casos, incentivamos a fantasia e olhamos com confiança para os cenários sonhados. Se os vimos, para quê negá-los? Como tenho tentado reforçar de várias formas, a verdadeira alegria da linha entre realidade e ficção é poder apagá-la. Como no teatro e como no cinema, fazemos um pacto com os sonhos. Mesmo sabendo, muitas vezes, que estamos a sonhar ou, pelo menos, que a nossa gata já morreu, permitimo-nos pedir-lhe que volte.
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