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Ingmar Bergman (1918-2007) é uma referência incontornável do século XX. Realizador, produtor, encenador e escritor, o seu trabalho é reconhecido sobretudo no domínio do cinema com os títulos Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957), Persona (1966), Sonata de Outono (1978), entre muitos outros, com uma carreira que conta com mais de sessenta produções entre filmes e documentários. Da sua estética destaca-se a teatralidade e intensidade dramática, o trabalho de direcção de actor no domínio das palavras e na exploração dos arquétipos da mente, como sejam o Amor, a Morte, a Solidão e a Paixão, recorrendo ao existencialismo para os questionar e resolver segundo um profundo trabalho a partir da interioridade do intérprete.
É sobre este homem e obra que se apresenta a mais recente produção do Teatro Nacional 21, Os Demónios não gostam de ar fresco, um espectáculo híbrido que se desenvolve entre o cinema e o teatro, expondo as dinâmicas de um processo criativo e fazendo dele filme, numa metaficção que desmonta/ experimenta/ explica a aura apaixonante do autor sueco.
A linguagem cinematográfica de Ingmar é o ponto de partida do imaginário deste espectáculo. Ouve-se aquilo que parece ter sido o momento decisivo do início deste projecto: uma chamada que anuncia a resposta positiva à recepção da equipa criativa no Bergman Center, centro cultural na ilha de Faro, Suécia, que se concentra na vida e nas realizações artísticas do lendário realizador. Prossegue um filme realizado nessa ilha, inspirado na biografia e obra de Bergman, com texto de Maria Quintans.
A expectativa de receber uma obra de teatro mais ou menos convencional fica, portanto, desde logo frustrada, mas feliz: um exercício cinematográfico extenso reproduz as inquietações do autor numa conversa entre uma Morte sarcástica (Íris Cayatte), um Medo que valida a necessidade da sua existência (Maria Ladeira) e um Silêncio cuja figura se impõe (Ivo Alexandre). Ingmar Bergman, interpretado por Luís Puto, é o protagonista. Reconstrói-se o imaginário do realizador entre as paisagens de águas serenas do Báltico e diálogos transferidos a preto e branco, característica da assinatura bergmaniana. A delicadeza da imagem, da autoria de Henrique Pina, está sob constante influência da herança do realizador, afirmando-a com detalhe e precisão.
A homenagem em tela ao autor prossegue até ao momento em que se dá um problema técnico que inibe a passagem de som do filme. As luzes de sala acendem e ao público é anunciado que o problema será resolvido o mais rápido possível, para que a exibição possa continuar.
É já raro, em teatro, a execução eficiente destes truques dramáticos de suspensão da ficção criada, anunciando o fim aparente da mesma. Contudo, este momento cénico é criado com eficiência e credibilidade durante longos segundos que surpreendem o espectador no truque preparado. O cinema, a “amante cara e exigente”, nas palavras de Bergman, dá lugar à “esposa fiel” de Ingmar, o teatro na sua plena aceção. O espectador é ludibriado pelo erro, que afinal faz parte do guião de Os Demónios, para assistir à resolução da narrativa da tela por via do teatro. Como deus ex machina, Luís Puto é o primeiro a surgir em palco a lamentar o sucedido, anunciando o improviso teatral para que a fruição do filme possa prosseguir.
Luís Puto assume o papel de Albano Jerónimo (director do espectáculo) para a direcção dos actores do “seu filme” como Ingmar Bergman. Albano Jerónimo assume o papel de Luís Puto que interpreta Ingmar Bergman, o restante elenco apresenta-se em cena para seguir o plano, e juntos dobram “em directo e em presença” o filme que ficou mudo.
As várias camadas de interpretação convocadas para a restruturação do espectáculo (e do filme) dão conta do virtuosismo do trabalho dos actores (já comprovado na tela), que com o guião nas mãos representam-se a si próprios a representarem uma situação desconfortável como intérpretes surpreendidos pelo sucedido, que por sua vez tentam interpretar o melhor possível os esboços de personagens bergmanianas filmadas. O que para uns é aflição, para outros é jogo, dá-se lugar à comicidade, ao bufão, à caricatura e ao histrionismo, numa linha absolutamente ténue entre o desejável e o exagero. Nem Deus, interpretado por Rita Loureiro, tem mão no demónio que se revela ser Albano, um actor selvagem que incomoda e atrapalha qualquer pretensão de seriedade na progressão da direcção de Luís no seu filme. Na tela, a narrativa salta de Faro para as praias de Setúbal, numa ironia que comenta os fundos e custos das produções artísticas nacionais.
Finalizado o filme, o momento de teatro pantomimeiro que soluciona o problema de som é literalmente varrido do palco pela também directora do projecto Cláudia Lucas Chéu, juntamente com a sua assistente, Solange Freitas. Esta cena, absolutamente acessória e desnecessária (mas que vem, no entanto, produzir mais um comentário sobre o fazer artístico nacional), dá lugar à inversão dos papéis e das linguagens até então experimentadas.
Se primeiro é o cinema que faz uso da linguagem teatral como componente essencial da estética de Bergman (relativamente aos diálogos, personagens e dinâmicas), agora é o teatro que se dá a ver por via de uma linguagem cinematográfica, produzindo um momento impressionante e de grande beleza do ponto de vista da imagem criada. Sem ter qualquer lógica dramatúrgica, o significado deste momento pode ser resgatado se for entendido como o soprar dos fantasmas que habitam o génio artístico do realizador.
Finalmente, e sem nenhuma justificação para além do facto da primeira carreira deste espectáculo acontecer no mês de Abril, e de tanto Ingmar Bergman e Fernando Lopes-Graça estarem mortos, o espectáculo termina com a obra Acordai interpretada por um coro exímio que surge em cena e dá voz ao momento musical de intervenção.
Os Demónios precisam de ar fresco tem, assim, como calcanhar de Aquiles várias lacunas dramatúrgicas, associadas a vários falsos finais, resultando, no entanto, num trabalho interessante e complexo no domínio do cruzamento de linguagens e da inspiração criativa para pensar uma referência artística como Ingmar Bergman.
De destacar, para além do trabalho de todo o elenco já comentado, o trabalho musical de Eva Aguilar, cujo violoncelo se torna personagem viva e participante, e paisagem sonora cativante, densa e imprescindível da parte cinematográfica do espectáculo.
[Os Demónios não gostam de ar fresco]
DIREcÇÃO: Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu. TEXTO: Maria Quintans. INTERPRETAÇÃO: Luís Puto, Rita Loureiro, Íris Cayatte, Maria Ladeira e Ivo Alexandre. VOZ-OFF: Liv Ullmann. VIOLONCELISTA: Eva Aguilar. CORO/CANTORES: Maria Grilo, Sara Robert, Lucas Mandillo, Vasco Gonçalves, Matias Rodrigues, José Louro, Maria Barankievicz, Catarina Pinto. ESPAÇO CÉNICO: Albano Jerónimo. FIGURINOS: Helena Guerreiro. DESENHO DE LUZ: Rui Monteiro. ASSISTÊNCIA DE LUZ: Zeca Iglésias. DESENHO DE SOM: João Neves. DRAMATURGIA: Maria Quintans e Cláudia Lucas Chéu. ASSISTÊNCIA DE ENCENAÇÃO: Solange Freitas. VÍDEO: Henrique Pina. ASSISTENTE DE REALIZAÇÃO: Rodrigo Andrade. DIRECTOR DE SOM: Toninho Neto. MISTURA DE SOM: Ricardo Fialho. MAQUILHAGEM E CABELOS: Sara Marques de Oliveira. COMUNICAÇÃO: Sara Cavaco. DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Francisco Leone. ASSISTENTE PRODUÇÃO: Solange Freitas. FOTOGRAFIA: Bruno Simão. APOIOS: Bergman Center e Leopardo Filmes. AGRADECIMENTOS: Coro Lopes-Graça, Casa do Comum, Emília Moreira, Emilie Speleman Smith, Inger Söderdahl, João Mota, João Pedro Fonseca, Madalena Massano, Mrs Liv Ullmann, Raquel Matos, Rosário Silva, Rui Estrela, São, Teatro da Comuna, Teatro da Garagem, Tozé das Luzes, Ulf Johan Gustaf Smith, Universidade de Évora, World Academy e Zabra. COPRODUÇÃO: Teatro Nacional 21, Casa das Artes Vila Nova de Famalicão, Teatro Viriato e São Luiz Teatro Municipal.
Este texto está também publicado em www.ocalcanhardeaquiles.wordpress.com
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