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Dez anos após a classificação do cante alentejano como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, é tempo de reflexão sobre o caminho percorrido, os desafios actuais e a possibilidade de novos futuros a nível de pensamento estratégico e acção.
1.
No já longínquo ano de 1997 era organizado em Beja o 1.º Congresso do Cante Alentejano. Na época, entre outros desideratos, lia-se na imprensa regional e local que este evento “deve ser aproveitado para que se depressa se criem raízes organizativas e logo medre um órgão coordenador dos corais que os dinamize, incentive, lhes aumente a autoestima, denuncie as adversidades e, daí, faça surgir uma nova atitude das gentes e do poder face à ‘moda’ e seus intérpretes”. Era ainda notória a preocupação com o desinteresse dos jovens pelo Cante e a necessidade de alterar essa percepção em relação à tradição coral polifónica da região.
Sublinhe-se, neste ponto, que o universo da música tradicional, e mormente/também o da música a capella (neste último caso devido, porventura, à ausência de instrumentos e de um “maior” impacto sonoro e visual) foi, durante muito tempo, encarado por vários sectores da sociedade, como uma espécie de género menor ou “parente pobre” da identidade cultural nacional, também devido a um crónico desinteresse ou desconhecimento geral sobre a realidade etnomusicológica.
Contudo, tem vindo a surgir, um pouco por todo o país, um número crescente de projectos vocais polifónicos na área da música tradicional (vários deles com uma formação mista ou exclusivamente compostos por mulheres), traduzindo assim um renovado interesse pela tradição, pela reconexão identitária e pelo papel nuclear da voz e do canto colectivo enquanto “gatilhos” e “passaportes” empáticos, como mecanismos agregadores de sociabilidade, como argamassa afectiva e criativa. (O próprio canto a vozes de mulheres, a três ou mais vozes, entrou em 2023 no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial Português (Matriz PCI), pela mão da Associação de Canto a Vozes – Fala de Mulheres, como reconhecimento da sua identidade e singularidade.)
Ao longo das últimas décadas, muitos foram e são os agentes no Alentejo – entre autarquias, outros organismos públicos (ex-Direcção-Regional de Cultura, Fundação INATEL, Turismo de Portugal, instituições escolares, etc.), entidades empresariais (adegas, restaurantes, quintas de turismo rural), associações culturais/grupos (o chamado terceiro sector) e outros – que têm contribuído, por vias e em modos diversos, para alterar progressivamente a mundividência em relação ao Cante e para um seu maior estudo, valorização e dignificação numa lógica patrimonial e identitária. Projectos independentes como, por exemplo, o d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria também têm permitido cartografar, registar e visibilizar múltiplas práticas e expressões ligadas ao ecossistema dos grupos corais na sua diversidade e pluralidade socioculturais.
Daí que a inscrição do Cante como Património Cultural da Humanidade da UNESCO em 2014 tenha sido o feliz corolário dessa longa caminhada, com duas consequências directas mais evidentes: o crescente interesse por esta tradição, não só por parte da opinião pública em geral e das entidades ligadas ao poder, mas em particular pelas gerações mais novas, tendo inúmeros grupos surgido e/ou se renovado nos últimos anos (e com especial incidência após a pandemia); e o inegável incremento da visibilidade, em escalas geográficas mais alargadas (no plano nacional e na esfera internacional; mas também junto dos media), do seu imaginário, história e legado cultural.
Para além das dinâmicas informais e de proximidade-interacção, nos foros comunitário e artístico, intrínsecas aos próprios grupos de cantadores nos seus territórios de implantação e disseminação, o apoio e programação culturais dos municípios tem sido um dos principais motores de difusão e externalização do Cante – com tudo o que isso acarreta de vantajoso, mas também, por vezes, de questionador e até de frágil. Por outro lado, o ecossistema universitário (sobretudo de Évora e Lisboa) também tem desempenhado um papel muito relevante no que toca a um maior enfoque e aprofundamento da investigação, pensamento e conhecimento em torno desta tradição musical.
Numa panorâmica que se pretenda abrangente, rigorosa, realista e com algum necessário distanciamento crítico sobre a temática do Cante, constata-se que tem havido uma atenção, mormente por parte das entidades públicas, sobretudo para três quadrantes deste universo.
Um deles é a vertente programática/performativa, ou seja, o apoio e/ou organização-promoção de múltiplos formatos de apresentação pública de agrupamentos de cante em enquadramentos e contextos culturais e recreativos diversos, quer realizados no Alentejo quer fora da região.
O outro eixo de intervenção centra-se nas componentes da museologia e arquivo (ou seja, nalguns quadrantes da questão do conhecimento), quer através da criação e dinamização de espaços museológicos (por exemplo, o Museu do Cante Alentejano, em Serpa, equipamento da autarquia), quer da reabilitação e maior difusão de micro-lugares informais que são epicentro de criatividade e convivialidade (o caso da renovada “Taberna dos Camponeses”, na vila de Pias; ou do projectado “Casão do Cante”, a instalar futuramente em Vila Nova de São Bento), quer ainda da organização de um repositório arquivístico que visa o registo, preservação e divulgação da memória coletiva associada ao Cante.
Uma terceira valência do Cante prende-se com a faceta pedagógica (igualmente ligada ao conhecimento), de transmissão formal deste saber imaterial e do seu imaginário e herança aos mais pequenos, patente nas várias dinâmicas de educação artística em curso em muitas escolas do 1.º ciclo de vários concelhos do Baixo Alentejo – prática/aposta que é fundamental continuar a estimular e aprofundar, e não quebrar em termos de continuidade da acção.
Relativamente à dimensão da programação, além dos inúmeros eventos pontuais em torno do Cante habitualmente integrados nas agendas culturais municipais, é de realçar, entre outras iniciativas-âncora, o papel importante que determinados projectos programáticos multidisciplinares de continuidade, como o Artes à Rua (que teve a sua 5.ª e última edição em 2023, e cuja tónica foi o diálogo das artes com a música em interacção criativa com o património construído) ou o [Festival] Imaterial (iniciado em 2021 e partindo da premissa basilar de que a música existe no espaço e dialoga com ele), têm desempenhado na paisagem cultural do Alentejo. Na região, mas com portas abertas ao mundo, à diferença e à diversidade, ao diálogo multicultural (como banho de humildade e ausência de ódio), à porosidade da troca de saberes e práticas, e ao espanto-inquietação, questionamento e transformação que advêm do encontro com o Outro.
Estas duas propostas – organizadas e dinamizadas pela Câmara Municipal de Évora (cidade que é Património Mundial da UNESCO desde 1986) com vários parceiros – têm privilegiado não apenas a questão da apresentação de espectáculos em torno do Cante (quer formatos já existentes no mercado e em itinerância, quer múltiplas encomendas artísticas, mais ou menos arrojadas conforme os casos, cruzando músicos de diferentes sensibilidades, percursos, latitudes), mas também um “vagar” para questões ligadas ao pensamento, formação e mediação, através da realização de residências, conferências, debates, workshops e outras propostas que visam interrogar, diversificar, densificar e (des)construir percepções e atitudes em relação às tradições orais e musicais do Alentejo.
É de sublinhar também, neste passo, o consistente contributo que o extinto Festival B, encetado em Beja em 2018 pela mão da autarquia e com curadoria independente (e com apenas duas edições), teve, enquanto boa prática, no cruzamento criativo entre os universos do Cante, do Fado e da Dieta Mediterrânica, numa estreita ligação também ao património material/edificado. Frise-se ainda que em Beja está sediado um Centro UNESCO de Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, gerido pela edilidade local, o qual também pode desempenhar um papel relevante, desde que adequadamente calibrado em termos programáticos para esse desiderato, em prol do Cante e das suas manifestações e protagonistas.
Sobre a dimensão da pesquisa, inventariação e digitalização do Cante, em Maio deste ano foi lançado o Arquivo Digital do Cante, um ambicioso projecto que inclui já os acervos de 122 grupos corais e mais de trinta mil documentos, e que junta, em termos institucionais e de trabalho em parceria, a Alentejo, Terras e Gentes – Associação de Defesa e Promoção Cultural do Alentejo ao Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora e à Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (CIMBAL), contando ainda com o apoio de outras entidades da região. Este continuado labor investigacional já permitiu identificar mais de 350 grupos de cantadores, entre extintos e em actividade, sendo que a amplitude geográfica da implantação dos mesmos extravasa claramente as fronteiras do Alentejo, estendendo-se, via diáspora, ao Algarve, à Área Metropolitana de Lisboa, a países como França ou Canadá, entre outros, ou aos próprios PALOP.
Actualmente, a julgar pelos dados de 2024 resultantes do inventário nacional encetado pelo já citado Museu do Cante Alentejano, existirão 164 grupos corais activos com 3105 cantadores, cuja maioria se situa no distrito de Beja (cerca de 60%), seguindo-se Évora e Lisboa. Além de haver um número crescente de grupos de Cante formados por jovens, constata-se igualmente que há mais jovens a integrar agrupamentos de maior antiguidade e reconhecimento.
Soma-se ainda, nesta vertente documental, o Observatório do Cante Alentejano e o Centro de Documentação do Cante Alentejano, criados em Castro Verde em 2021 pela autarquia, com os objectivos de contribuir para a recolha, tratamento e análise estatística do universo dos grupos corais, e de desenhar um plano de salvaguarda relativamente a este património.
Mas o cante alentejano tem conhecido também, nos últimos anos, outras abordagens que reflectem uma pulsação acompanhada e uma vincada frescura e ideia de contemporaneidade, posicionando esta manifestação cultural como algo que não se limita a estar na ilha, mas que sai da mesma para ver de modo diferente (como dizia Saramago) e/ou que se permite abrir ao novo, ao não óbvio, ao mais subtil, ao menos expectável – ilustrando, assim, a sua capacidade de se metamorfosear e reinventar criativamente.
Um dos projectos culturais mais estimulantes e inovadores a este nível, a operar no Baixo Alentejo, tem sido o Futurama, iniciado em 2021 e abrangendo actualmente os concelhos de Beja, Castro Verde, Mértola, Serpa e Vidigueira. O objectivo primacial desta macro-proposta (de iniciativa independente e com apoios autárquicos e de fundos nacionais para a cultura/artes) consiste na implementação e alavancagem de um ecossistema cultural e artístico transdisciplinar, colaborativo e transfronteiriço, através de uma programação partilhada que coloca em diálogo educação e artes, criação contemporânea e tradição, espaços culturais, patrimoniais e de ensino.
Nessa lógica de cruzamento disciplinar, a tradição do Cante tem constituído um dos enfoques da programação do Futurama, nomeadamente com a criação do projecto musical “Cantexto”, que tem vindo a propor, ao longo das várias edições do festival que lhe está associado, a encomenda de textos (letras) a diversos escritores de língua portuguesa, os quais são depois musicados para os grupos corais sediados no território. Há, assim, uma intenção de actualizar os temas habitualmente desenvolvidos na poesia oral do Cante (a vida rural, o amor, a religião), confrontando-os com preocupações e contextos contemporâneos (a memória, as migrações, o futuro, a natureza, etc.).
Em 2025, o Futurama vai, inclusive, abrir um espaço físico em Beja, num claro movimento de aprofundamento da imersão e proximidade com o território em que trabalha, fazendo brotar no coração da cidade um terceiro lugar dedicado à arte e à formação cultural, o qual combina um escritório com uma programação expositiva e tem como objetivo capacitar os agentes culturais locais e promover a sensibilização para a riqueza da arte e da cultura na região.
Soma-se às dinâmicas já aludidas outros fenómenos (uns mais pontuais, outros mais recorrentes) que, partindo do Cante ou sendo este um “ponto de chegada”, têm vindo a florescer nos últimos anos. Um deles prende-se com o gradual surgimento, dentro e fora do Alentejo, de projectos musicais (com vozes e instrumentos; em geral, numa abordagem que, ao nível dos arranjos, privilegia o diálogo e fusão entre várias estéticas sonoras; ou até um registo mais mainstream) compostos por jovens/criadores emergentes ou por figuras com percursos mais consolidados que se inspiram e vão beber ao imaginário, cancioneiro, ambiente e técnica associados ao Cante.
Paralelamente, as experiências artísticas colaborativas, em diferentes contextos e abordagens, entre músicos ou bandas mais mediáticos/consagrados (Pedro Abrunhosa, D.A.M.A., Ricardo Ribeiro, António Zambujo, Buba Espinho, Monda, Luís Trigacheiro ou Carlos Martins, entre outros) e grupos corais alentejanos acabam por incrementar a visibilidade do Cante, por demonstrar a sua elasticidade estética/sonora e também por contribuir, directa e indirectamente, para a formação de renovados públicos em torno desta tradição musical. Note-se, ainda assim, que algumas destas práticas mais visibilizadas podem originar ainda, eventualmente, outros efeitos mais discutíveis sobre os quais é útil reflectir, e que têm muito a ver com algumas motivações, lógicas de encaixe artístico e moldes específicos em que são desenhadas certas parcerias.
Em suma: é realista afirmar que o Cante está vivo no Alentejo e no país, teima em pulsar e ostenta um potencial simbólico, cultural, económico e social significativos e diferenciadores do qual importa cuidar e preservar, mas também questionar, alargar e aprofundar, com consistência, coerência, responsabilidade (partilhada) e visão estratégica para este sector.
2.
Não obstante tudo o já exposto, há várias dimensões do Cante enquanto património cultural imaterial com a chancela mundial da UNESCO que continuam pouco exploradas e densificadas, evidenciando a necessidade de aprofundar e alargar as linhas de pensamento e acção em torno desta manifestação cultural. Por outro lado, não poucos dos discursos mais recorrentes continuam, nas suas entrelinhas, a colocar a tónica numa visão passadista e mitificada do Cante (ainda com subtis ecos, aqui e ali, da herança estereotipada da ditadura), em que este ainda tende a ser retratado como uma reconstituição histórica de como era o Alentejo noutros tempos.
A tradição é, por natureza, um fenómeno fluido e dinâmico (ao contrário do que uma visão mais conservadora, rápida e superficial possa ilustrar), em constante mutação, e não um elemento fossilizado, isolado e inerte. Olhando para trás, o Cante soube reinventar-se e resistir à passagem do tempo, e deve ser encarado como um património contemporâneo, do presente, de hoje. A discussão não pode nem deve esgotar-se, de forma redutora, na usual crítica em torno da patrimonialização ou turistificação do Cante, apesar de serem tópicos que merecem reflexão e debate públicos. A aglutinação e harmonização de visões e vontades entre o universo dos grupos corais, as autarquias, as entidades regionais, as escolas e o poder central deve constituir uma prioridade estratégica, para que, de facto, os próprios agrupamentos – como “elo teoricamente mais frágil” desta cadeia – se sintam ouvidos, protegidos, dignificados e apoiados.
Numa perspectiva global e holística do Cante, existem cinco dimensões deste universo que permanecem pouco trabalhadas e que devem vir para cima da mesa de um modo assumido e assertivo em termos de eixos de intervenção:
A primeira tem a ver com a vertente artística/criativa e com a transmissão e diálogo com o mundo, e traduz-se em questões como a importância de o Cante se abrir a novas abordagens a nível de criação de letras, versando temas e realidades contemporâneos, para o seu repertório, bem como de estabelecer pontes e diálogos realmente transformadores com outras manifestações polifónicas a capella, oriundas de geografias diversas e inscritas em inventários de património cultural imaterial.
No caso da vasta lista classificada da UNESCO, bastaria pensar, por exemplo, em tradições como a performance Al Azi (uma oração a capella entoada apenas por homens), dos Emiratos Árabes Unidos, ou a canção polifónica de Epirus, praticada nas zonas da Grécia e Albânia. Isto porque dar visibilidade ao Cante não significa apenas difundi-lo e visibilizá-lo externamente, mas também abri-lo criativa e culturalmente à diferença, ao Outro, tornando-o mais permeável, poroso e autónomo, através de colaborações e intercâmbios que visem também a construção de novas abordagens formais e conteúdos artísticos, numa óptica transfronteiriça e multidisciplinar.
Mas trata-se também de convocar para o Cante e para o seu filão criativo as grandes questões da contemporaneidade: a paz, a solidariedade, o individualismo, o envelhecimento, a dignidade, a tolerância, a empatia, a diferença, a ecologia. É essencial esse alinhamento, não passivo, com as inquietações e rumores do mundo, com uma perspectiva que seja simultaneamente local e global, que acautele e defenda a identidade, mas que, ao mesmo tempo, nunca perca de vista – pois não são posturas incompatíveis – uma atitude universalista.
Tudo isto tem a ver ainda com outro pertinente alarme: o perigo da uniformização e normalização nas formas de cantar, no “estilar” dos versos, e ainda uma tendência redutora e perigosa para a reprodução sistemática das mesmas letras (por vezes, por influência da mediatização e “fixação” de várias delas por artistas em nome individual mais reconhecidos). Aqui e ali vão-se observando, entre os grupos corais, algumas atitudes de mimetização estética – fruto também de “curadorias” mais impositivas – que não traduzem a (re)conhecida diversidade em que se ancora o Cante, o qual prima precisamente por múltiplas variantes, estilos e nuances interpretativas na escala local/concelhia (e mesmo dentro desta), as quais, em malha fina, contribuem para a sua significativa vitalidade, diferenciação e espessura identitárias.
Uma outra dimensão reporta-se à sustentabilidade financeira dos grupos e à sua organização interna ao nível dos modelos de gestão e funcionamento regular. (Economia é aqui também uma palavra de ordem.) Ainda que havendo uma por demais evidente heterogeneidade, neste plano, quando se olha para o ecossistema do Cante no Alentejo, é necessário, do ponto de vista estratégico e funcional, que quer o Estado Central, quer na esfera regional (a CCDR do Alentejo, as várias CIM da região, o Turismo de Portugal), quer ainda no plano municipal, se criem e consolidem instrumentos para apoiar financeira e tecnicamente estas estruturas independentes de um modo consistente, continuado e realista, de forma também a conferir uma maior estabilidade e previsão ao trabalho dos grupos corais.
No domínio local, esse suporte financeiro regular – em função do perfil, grau de maturidade e organização, qualidade estético-artística e impacto territorial de cada agrupamento – afigura-se essencial para os grupos de cantadores, quer seja através de contratos-programa, protocolos colaborativos ou calls para apresentação/financiamento de projectos específicos, quer por meio de procedimentos concursais e prémios, quer ainda de encomendas e outros desafios criativos lançados por entidades públicas ao sector cultural da região.
A realidade actual já não se deve compadecer com algumas práticas esclerosadas e pouco dignificantes ainda vigentes, como sejam os apoios ou outros retornos institucionais baseados quase exclusivamente na cedência de transportes, na oferta de refeições ou numa participação não poucas vezes residual/invisível e pouco dignificadora de alguns grupos em certas mostras, mercados, feiras e festivais (recordando algumas cenas do filme “Alentejo, Alentejo”, de Sérgio Tréfaut e outras imagens infelizmente ainda recorrentes nalguma oferta cultural a sul).
Quanto aos modelos organizacionais dos agrupamentos de Cante, se é um facto que a maioria deles se caracteriza por uma maior informalidade e horizontalidade na sua estrutura associativa, e por uma ausência (legítima) de preocupação relativamente à questão da profissionalização, essa tendência prevalecente não invalida duas necessidades que se estendem a todo este universo: a de apoio técnico, administrativo, financeiro e formativo, visando uma capacitação basilar das suas equipas/núcleos duros e uma maior potenciação e musculação das suas valências; e uma reflexão sobre antigas e novas estratégias de captação de novos elementos para as suas organizações, nomeadamente para funções específicas ligadas ao seu funcionamento regular.
Note-se ainda, sobre a temática dos apoios, que em Portugal, neste momento, não existem linhas/programas de financiamento público directo e específico, via Estado Central (tutela da Cultura), para o campo do património cultural imaterial, mormente para as expressões já inscritas no seu Inventário Nacional, sendo, por isso, premente reivindicar essa necessidade e contribuir, também desta forma, para uma maior valorização, representatividade e dignificação não apenas simbólicas, mas também pragmáticas deste sector. Ainda mais quando em 2023 o Ministério da Cultura, através da ex-Direcção-Geral do Património Cultural (actual Património Cultural, I. P.), anunciou a criação da Rede Nacional do Património Cultural Imaterial (RNPCI), a qual, em termos de políticas públicas, deverá, idealmente, incluir instrumentos de financiamento para este sector.
Na esfera regional, as reestruturadas comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR), integradas no Ministério da Coesão Territorial, têm, desde Janeiro de 2024, como uma das suas novas competências o apoio ao tecido cultural não profissionalizado, estando disponíveis verbas para suportar e acelerar iniciativas e projectos pontuais também na área do património cultural imaterial (expressões orais, celebrações, práticas performativas comunitárias, saber fazer tradicional e práticas e representações coletivas ligadas à natureza e universo), para além do estímulo, consultoria estratégica e apoio técnico à elaboração de candidaturas a fundos europeus pelos agentes da região.
Um terceiro eixo, igualmente ligado ao valor económico, é o da profissionalização. Partindo do princípio – que parecerá banal recordar, ou não – de que todos os grupos corais serão formados por “amadores” (ou seja, por pessoas que amam o que fazem; e não, noutra acepção mais moderna e competitiva, por pessoas que são “amadoras” por não serem profissionais do canto, da arte), pode observar-se no universo dos grupos corais a existência, quer em projectos mais jovens quer noutros mais antigos, de determinados colectivos que se enquadram já, por razões diversas, num patamar diferente de organização, consistência, qualidade, impacto e ambição. E – há que vincar bem esta ideia – ambas as realidades estão “certas”, são legítimas e têm o seu caminho a percorrer.
Mas para que estes últimos (e outros que o desejem) possam ter um horizonte mais largo em termos de crescimento e evolução, que lhes permita inclusive, hipoteticamente, fazer da música a sua ocupação profissional principal, é crucial a existência de estruturas e mecanismos (privados e públicos) que os enquadrem e capacitem para tal. E isso passa por múltiplas e exigentes vertentes, como sejam: a existência de condições adequadas, em termos criativos e técnico-logísticos, para a produção e gravação de trabalhos discográficos; o apoio à itinerância regular de projectos artísticos através da criação de circuitos regionais em articulação com a dimensão turística (restaurantes, hotéis, adegas, turismo rural, eventos-âncora, casas de cante [na linha do já citado caso de Pias, ou de espaços como “O velho mais novo da aldeia”, em Beja, ou “O Barranquenho”, em Moura, entre outros exemplos]), de parcerias/colaborações e da integração em redes temáticas e geográficas de programação numa escala nacional e internacional (como a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses ou a já referida Rede Nacional do Património Cultural Imaterial); o incentivo à instalação, em territórios do interior, de estruturas independentes de agenciamento (booking e management) e de empresas de comunicação/marketing ligadas/comprometidas com o património cultural; a introdução de iniciativas e programas de capacitação e mentoria artísticas que possam sensibilizar e contribuir para uma maior preparação dos cantadores em termos técnicos e promocionais/comerciais, potenciando inclusive o seu valor económico; ou ainda uma maior aposta no ensino superior artístico e na diversificação e actualização das suas metodologias, objetivos, planos de estudos e modalidades de interacção com o mercado de trabalho.
A componente performativa, de interface com o público, é outra problemática assaz pertinente. Ainda vai sendo habitual observar muitos grupos corais em performances onde os requisitos e condições técnicos/logísticos, acústicos, contextuais e promocionais necessários a uma digna, adequada e impactante apresentação artística do Cante não são devidamente acautelados pelas entidades organizadoras dos eventos em que as mesmas se inserem.
A falta de cuidado e sensibilidade em relação à escolha da localização física do palco (mormente quando se trata de eventos massificados em formato de feira/festival outdoor, onde existem também outros espaços performativos com produção sonora mais intensa e volumosa), a menor preocupação com a cenografia e a vertente luminotécnica, o tipo de microfonia empregue na captação vocal (é usual quer a utilização de material não consentâneo com um formato de canto a capella que tem dois solistas [um “ponto” e um “alto”] e um coro de vozes), o posicionamento tecnicamente inadequado dos vários microfones em palco, o frequente descurar, a nível de stageplot, da munição (som de retorno) e/ou da necessidade de estruturas amovíveis para dispor os elementos do grupo em diferentes patamares, a reduzida duração das actuações ou então, inversamente, um prolongamento desmesurado das mesmas (isto face à capacidade temporal de fruição psicológica do público), o quase nulo enquadramento contextual da sua participação por parte das organizações promotoras e a reduzida visibilidade comunicacional em torno da mesma – são apenas alguns dos aspectos menos abonatórios que é comum ainda identificar em diversas iniciativas culturais e recreativas envolvendo grupos de Cante (sem cair aqui em generalizações abusivas, claro).
A banalização algo silenciosa e acrítica destes fenómenos acaba por ir instalando uma certa ideia de “instrumentalização” do Cante e de redução do mesmo a algo mais “decorativo”, forçado e “desimportantizado” (para usar um termo feliz de Alexandre O’Neill), mas política e socialmente útil e conveniente. Note-se, aliás, que a estas práticas que orbitam em torno do cante alentejano também não é alheia a extrema necessidade de uma estratégia global/regional de mediação, promoção e difusão do mesmo, a qual seja devidamente planeada, concertada entre os seus diversos protagonistas, clara nos seus objetivos e métodos, direccionada e consistente na sua aplicação prática. Uma coisa é simplesmente introduzir grupos corais em contextos festivos e disponibilizar-lhes um dado espaço para divulgarem o seu repertório; outra, bem diferente, é desenvolver, em várias frentes, um trabalho aturado, integral, informado e ambicioso (que tem um pré, um durante e um pós-espectáculo) de valorização dos grupos corais, do seu cancioneiro, do seu imaginário, da sua história, da sua organização associativa, da sua matriz etnográfica.
Daí que – e este será o quarto eixo – o plano de salvaguarda, previsto no dossier da candidatura portuguesa à UNESCO, constitua um elemento tão relevante neste processo, permitindo que a comunidade ou o(s) grupo(s) prossigam – com estabilidade, cuidado/zelo e critério – a prática e a transmissão do elemento classificado. Mas como está a ser operacionalizado o mesmo no caso do Cante? Que medidas concretas estão a ser implementadas e como tem sido monitorizado, acompanhado e avaliado o seu impacto? Ou estamos, amiúde, perante diferentes movimentos isolados encetados por alguns agentes institucionais locais/regionais, sem diálogo nem articulação entre si?
Por fim, porventura o mais relevante de todos os aspectos: a contribuição do Cante, até pela sua matricial ética, para o desenvolvimento local e a coesão social. Os maiores desafios do Alentejo extravasam a questão da música coral polifónica. Terão a ver, sim, por um lado, com a premente necessidade de estimular e incrementar a capacitação, o empoderamento, a autonomização e a inovação nas comunidades e seus agentes, e, por outro, com o aprofundamento de instrumentos e políticas quer de fixação quer de atracção de pessoas para o território, tudo isto contribuindo também para um aumento da sua massa crítica.
Mas o Cante, e a cultura e património alentejanos em geral, podem assumir, como é sabido, um papel muito relevante em termos de promoção da região e de criação de valor económico, mas também – enquanto manifestação colectiva fortemente enraizada no território – de argamassa ética no sentido de uma maior coesão e uma menor exclusão sociais. O poeta (militante) José Gomes Ferreira resumiria bem este espírito nestas palavras que têm o condão de acertar no centro das coisas: “Nunca vi um alentejano cantar sozinho com egoísmo de fonte.” Recupera-se assim o espírito da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural (de 2003) e o próprio texto do dossier que enformou a candidatura. Esse pensamento holístico afigura-se essencial para o presente e futuro do Cante, numa visão estratégica que não se reduza à questão musical e artística, mas que alimente e cruze as dimensões simbólica, psicossocial (incluindo aqui também a questão da saúde mental), pedagógica, cultural, turística e económica, colocando em efectiva interacção e articulação os players destes vários quadrantes.
Há na história do Alentejo uma memória incisiva de resistência, de dureza e privação, de abandono, de partida, de uma vastidão que é tanto alimento e esperança como “perdição”; mas também há um poderoso rastro identitário feito de diversidade, espontaneidade e criatividade. Que o Cante seja um dos pilares da desejada alavancagem (entre preservação e inovação) de uma região plena de potencial humano, telúrico, paisagístico e de uma energia singular que é invisível aos olhos, mas que pulsa rente à pele e à terra, que se sedimenta nos interstícios do tempo e se alimenta nos vastos corredores interiores do espírito.
Em 2027, Évora será Capital Europeia da Cultura, uma oportunidade-desafio muito importante, a vários níveis, para a região do Alentejo. Que este evento de escala internacional seja mais uma alavanca para que o Cante, com o seu intrínseco vagar, possa também transmitir e consolidar uma mensagem de aceleração estratégica relativamente ao seu processo (que é multicamada) de valorização, preservação, consolidação, capacitação, reinvenção, amadurecimento e aglutinação de pessoas, estruturas, recursos e dinâmicas. Porque é urgente um Cante que fale sobre si, (mas) de forma universal. Porque é imperativo defender a sua ética, mas também a sua diversidade e liberdade: não há só um estilo; há estilos; não há só um cante; há cantes. E, acima de tudo, há nesta música gregária algo que é único e irrepetível: uma simplicidade, rigor e limpidez plenos de complexidade, beleza, densidade.
E vem-me à memória aquela lucidez e encantamento de Eugénio de Andrade pelo Alentejo: “O que me fascina aqui é uma conquista do espírito sem paralelo no resto do país, numa palavra: um estilo. O melhor do Alentejo é uma liberdade que escolheu a ordem, o equilíbrio. Estas formas puras, sóbrias de linha e de cor, que vão da paisagem à arquitectura, da arquitectura ao vestuário, do vestuário ao cante, são a expressão de um espírito terreno cioso de limpidez, capaz da suprema elegância de ser simples. Povertà é talvez a palavra ajustada a uma estética alheia ao excesso, ao desmedido, ao espectacular. Ao luxo prefere-se a modéstia; à anarquia, o rigor; à paixão, um concentrado amor.”
Paulo Pires é gestor cultural e programador.
Trabalha, desde 2023, no Ministério da Coesão Territorial, inicialmente como assessor da Presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I. P., e actualmente como responsável pela sua área da Cultura.
Além de professor/formador, músico e mediador, desempenhou funções de direcção artística e de programação cultural em autarquias como Loulé e Coimbra.
Foi director do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, assessor do atual Director-Geral das Artes e adjunto da ex-Ministra da Cultura, Graça Fonseca.
A sul, no Algarve, foi também coordenador da programação cultural no Município de Silves, programador na Fundação Manuel Viegas Guerreiro (Loulé) e investigador, na área etnomusicológica, no Centro de Estudos Ataíde Oliveira da Universidade do Algarve.
É autor de inúmeras conferências, artigos e livros sobre cultura, artes e criatividade.
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