Quando a RE.AL (estrutura que dirijo) não obteve subsídio em 2015 foi um choque. Não só para nós, os principais lesados, mas para a generalidade da comunidade, que se manifestou de forma estupefacta e solidária em relação a uma decisão que, num só gesto, fazia implodir uma estrutura com mais de 25 anos, e que desde o início dos anos 90 mantinha uma atividade continuada e diversificada de programação em torno da dança contemporânea, nas suas diversas manifestações de criação, acolhimento, residências, formação, investigação, etc.
À violência que representou essa delapidação de património e desperdício irracional de recursos, adicionou-se o facto dos resultados só terem sido divulgados no fim de maio/inicio de junho (a meio do ano a que diziam respeito) e sem possibilidade de reclamação por se ter abolido o direito legal da “audiência prévia” (com o argumento, pasme-se, de já estar tudo muito atrasado). O primeiro gesto deixou-nos (-me) com uma divida que até hoje (e por mais alguns anos) teremos (terei) que pagar e o segundo deixou-nos sem a capacidade de contrapor, criando um fim abrupto, sem apelo nem agravo, que apagou a memória, a história, a possibilidade de inscrição. Como se não tivéssemos acontecido. Como se não existíssemos.
Na altura, apesar da indignação, atribuiu-se a responsabilidade desse gesto irracional à crise, ao governo de direita e à troika. Entretanto no fim de 2015 o Costa inventa a geringonça, a troika volta para Bruxelas (ou lá de onde vieram), as agências de rating tiram-nos do “lixo” e as coisas pareciam “endireitar-se” (“esquerdizar-se”). Tivemos inclusive direito a um Secretário de Estado da Cultura que e a uma Diretora Geral das Artes que vieram diretamente do “meio” (foram inclusive colaboradores da RE.AL nos anos 90 e por quem tenho grande estima pessoal). Agora é que era.
Só que não foi. E começou logo com o adiamento da abertura dos concursos em nome de uma reforma estrutural. Um gesto que até teria sido entendido (mesmo que retroativamente) como sensato e necessário se as suas consequências, nos 4 ou 5 pontos mais crónicos e absurdos que regulam os concursos desde sempre, tivessem sido resolvidos. Mas não. Depois de ano e meio de trabalho interno, depois de auscultar a comunidade e receber os seus contributos, de envolver estudos, análises e reflexões de académicos e especialistas… o resultado está muito aquém do esperado. E a indignação atual, perfeitamente legítima, é proporcional à “boa fé” que foi depositada nessa iniciativa.
Nos pontos mais relevantes nada mudou.
- A abertura dos concursos que deveria ter acontecido num calendário minimamente decente (junho, julho do ano anterior a que se reporta) voltou a ser no fim de outubro, inviabilizando o óbvio: que o inicio da atividade coincidisse com a entrada do financiamento.
- A dotação orçamental que, no mínimo dos mínimos, deveria ter voltado aos níveis de 2009 (para não falar do mínimo desejado de 1% reivindicado há anos) ficou muito aquém dessa legitima expectativa.
- A burocracia e a sua dimensão kafquiana, uma das críticas mais insistentes da comunidade, ganhou proporções que nem o próprio K. seria capaz de imaginar.
- E aspectos obviamente injustos no modus operandi da distribuição dos recursos, não foram corrigidos. Sendo o mais óbvio a forma como o (pouco) dinheiro que existe, em vez de ser distribuído proporcionalmente pelas estruturas elegíveis, ser distribuído de cima para baixo na lista das classificações, deixando de ser distribuído quando acaba e não quando deixa de haver companhias elegíveis. Bastava haver uma distribuição equitativa dos recursos, um gesto do mais elementar bom senso, para a comunidade perceber que a tutela, mesmo trabalhando com um orçamento reduzido, funcionava de forma justa e não a partir de uma ideia abstrata e arbitrária de justiça.
- E isso já para não falar na forma que o sistema deixa de fora (da própria elegibilidade) estruturas reconhecidas por todos como cruciais do tecido artístico português. Algo está profundamente errado com a própria máquina, se ela se dá ao luxo de desperdiçar e descartar uma quantidade tão grande de criadores e estruturas de referência no panorama das artes em Portugal.
Posto isto, pensei que esta seria uma boa oportunidade para re-publicar alguns dos textos (seleccionados) que fui escrevendo nos últimos 20 anos (sobretudo para o jornal Público) de forma a se fazer um zoom out e perceber o quão confrangedor é perceber que muito pouco mudou desde 1998. Parece que andamos a tocar o mesmo disco de sempre e que, à medida que se vai mudando de agulha (de Ministro ou SEC), o disco vai ficando cada vez mais riscado. A ferida vai ficando cada vez mais profunda.
Espero que esta leitura tenha alguma utilidade.
- Quero falar da Expo (1998)
- O futuro, essa outra margem (2000)
- A Dança Contemporânea Portuguesa (2001)
- E agora? Enterremos os mortos e tratemos dos vivos? (2001)
- Tirem-me deste filme (2001)
- Eu, Subsídiodependente, me confesso (2006)
- O que nos distingue e o que nos é próprio (2006)
- A (rivo)lição de Pacheco Pereira (2006)
- A velha-nova dança portuguesa (2006)
- Geração G.host (2009)
- Nó Cego (2010)
- Eu sou RE.AL (2015)
brilhante! obrigada por esta refrescura tão pertinente e oportuna, sofia neuparth (c.e.m-centro em movimento)